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Na aldeia onde todos se conheciam, havia uma mulher que nunca dizia nada. Nascera sem voz, e o seu nome mudava a cada estação do ano, o chamado “batismo do povo”.

Desde pequena, aprendera a comunicar de outras formas: com os olhos, as mãos, os gestos suaves. Mas havia coisas que nunca conseguira expressar. O amor que sentia pela mãe antes de a perder. O pedido de desculpa que queria fazer à irmã, com quem deixara de brincar. O olá ao vizinho por quem nutria uma paixão desde miúda. A raiva que lhe queimava o peito quando a tratavam como se fosse invisível.

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Sempre imaginei que Helena fosse um nome que combinava com as suas feições. E, para mim, Helena falava. Falava no seu jeito particular.

Conta-se que, todas as manhãs, saía de casa com uma pequena caixa de madeira e ia até aos campos mais afastados da aldeia. Sentava-se num monte de terra que já parecia pertencer-lhe e, sobre os joelhos, escrevia aquilo que por natureza não conseguia dizer. Dobrava os papéis com cuidado, como se os colasse, e enterrava-os na terra, como se plantasse sementes de verdade.

A aldeia não a compreendia. Diziam que era uma carta fora do baralho, que não pertencia ali. Havia quem se risse dela, quem murmurasse que era louca, que se Deus não lhe dera voz, era por castigo. Mas Helena nunca tentou explicar-se, de nenhuma maneira. Continuava a sua vida com um silêncio que fazia mais barulho do que as coisas que lhe diziam.

Até que, um dia, algo de muito estranho e extraordinário aconteceu.

O campo onde ela enterrava os seus silêncios encheu-se de flores. Flores de cores impossíveis de ilustrar, que exalavam um perfume capaz de apertar o estômago e embargar a voz de quem por ali passasse.

Cada pétala parecia ter pequenas marcas, como se nelas houvesse vestígios de palavras. Como se a terra tivesse lido os segredos de Helena e os devolvesse à aldeia sob a forma de mensagens.

Naquele mesmo ano, as pessoas que há muito estavam separadas reencontraram-se. Pais escreveram cartas aos filhos. Vizinhos começaram a falar entre si com mais ternura. E aqueles que, como Helena, tinham palavras presas dentro de si, começaram a libertá-las: em cartas, em olhares, em toques demorados.

Helena nunca chegou a saber o impacto que teve. Mas, naquela primavera, pela primeira vez, sentiu que tinha sido ouvida.

E, no campo onde o silêncio foi plantado, quem por ali passasse ficava com o coração na boca e gritava o que já não conseguia guardar dentro de si.

SANDRA MAY

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