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Em 18 de Agosto de 1974, uma entrevista com Mário Soares (Der Spiegel, 34/1974), à época Ministro dos Negócios Estrangeiros apresenta, num título, a disposição deste para mandar «disparar sobre colonos brancos, se necessário». A frase da revista alemã é, em rigor, uma pergunta colocada pela jornalista Jutta Fischbeck. Mas Mário Soares confirmou a possibilidade. A esta conclusão chegou, por exemplo, o jornal «Polígrafo».

Embora Soares não tenha pronunciado a frase concreta do referido título, António Louçã, jornalista e investigador, da RTP, também ele entende que o socialista confirmou o pressuposto da pergunta em que Jutta Fischbeck usou essas palavras, dizendo: «O Exército não hesitará nesse caso, e não pode hesitar. O Exército já mostrou que tem mão firme e que pretende manter a ordem a qualquer preço».

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O contexto? A revista começava por questionar Soares sobre se um Governo de Transição, empossado por um golpe militar, teria a “legitimidade para tomar uma decisão tão histórica” como seria a das independências dos territórios ultramarinos. Já na recta final da entrevista é abordada a questão de poder haver movimentos de «colonos» que não quisessem vir para a metrópole e ficassem a lutar contra os «movimentos de libertação», vulgo, movimentos terroristas, digo. E daí a pergunta e resposta acima.

No início de Setembro, Der Spiegel (36/1974) entrevistará novo actor político sobre as chamadas «Províncias Ultramarinas» desta vez, um dos responsáveis do poder da metrópole, o general Costa Gomes. Glosando o mesmo tema colocado a Mário Soares: «Irão as Forças Armadas impô-la [a descolonização] mesmo contra a vontade da população branca nas colónias?».

A resposta do general é radicalmente diferente da de Mário Soares: «É claro que a descolonização, principalmente em Angola, não pode fazer-se sem a concordância dos brancos, porque os brancos constituem em Angola o maior grupo de população, por assim dizer, a maior tribo».

Jutta Fischbeck, da redacção do semanário Der Spiegel, segundo António Louçã, era quem se encontrava em melhores condições para acompanhar os acontecimentos em Portugal no 25 de Abril de 1974. Tinha a mesma idade do seu homólogo do semanário Die Zeit, Horst Bieber, apesar de uma inclinação política bem diferente.

Em 1982 o semanário dedica-lhe um obituário, na sua morte prematura, descrevendo-a como “uma esquerdista combativa, com critérios claros de moral política”.

António Louçã, militante trotskista dos anos 70, viveu em Berlim no primeira metade dos anos 90, tendo sido redactor do jornal Gegenwind, órgão dos conselhos de trabalhadores leste-alemães. Produziu para a RTP documentários vários sobre a História Portuguesa. Foi membro da Comissão de Trabalhadores daquela estação televisiva onde trabalha ainda como jornalista.

Em Fevereiro do corrente ano surgiu a público mais um trabalho seu de investigação em que se compilam textos sobre aspectos assumidos como menos notórios da chamada revolução do 25 de Abril. Intitulado «Uma ingerência discreta – A Alemanha Federal e a Revolução dos Cravos», o foco dos textos recai sobre a relação política, dos governos da Alemanha Ocidental com Portugal, com destaque ainda para as fundações, caso da social-democrata Fundação Ebert e, ainda, para os media.

Os textos disponíveis e tratados por António Louçã apontam, por exemplo, para um dos maiores escândalos políticos alemães, a seguir à Segunda Grande Guerra: o escândalo dos donativos aos partidos. 50 milhões de marcos terão sido transportados em malas para Espanha e Portugal. O SPD alemão terá financiado partidos como o PS de Mário Soares, durante muito tempo. Uma parte desconhecida desses montantes regressou às contas ilegais dos partidos da Alemanha Ocidental. Ligações com o escândalo dos donativos da CDU alemã? Torge Loding, da Fundação Rosa Luxemburgo em Buenos Aires, prefaciador do livro de Louçã responde: «O chanceler e presidente da CDU, Helmut Kohl, recusou-se a dar pormenores e Wolfgang Schauble, que morreu no final de Dezembro de 2023, foi outro dos que guardaram silêncio até ao fim». Esclarecidos, pois…

O tema das «lavandarias ibéricas» e o financiamento dos partidos ibéricos mereceu de António Louçã, um capítulo. Em 1983, após três décadas como tesoureiro do SPD, Alfred Nau era guardião de 7,6 mil milhões de marcos nas contas partidárias, «sem dador identificado». Sigiloso mecenas. No final do século XX, a CDU alemã viu-se envolvida também num caso de financiamento anónimo comprometedor. Um financiador, o traficante de armas Karlheinz Schreiber, deixava adivinhar outros ainda hoje ignorados. A imprensa alemã renovou o interesse pelos casos de financiamentos da CDU alemã. Em Fevereiro de 2000 o diário Zeitung e o semanário Der Spiegel, tornavam à questão de uma parte de esse financiamento, leia-se, «poder ter origem em verbas destinadas pelo Governo federal alemão a apoiar determinados partidos nos países em transição pós-ditatorial». Apesar dos partidos de Espanha e de Portugal contemplados terem de emitir um recibo, e do escrutínio do Tribunal Federal de Contas, diz Louçã «o certo é que os recibos nem sempre foram emitidos». Este apetite dos partidos ibéricos pelos marcos ocidentais já era conhecido em 1990. Segundo o semanário Der Spiegel (22/1990) «Quem viajasse para Madrid ou Lisboa tinha sempre de levar na bagagem envelopes com dinheiro (…) Willy Brandt, enquanto presidente da Internacional Socialista, era alvo constante dos pedidos de apoio dos partidos ibéricos. E a Fundação Friedrich Ebert entregava regularmente dinheiro vivo ao PS, por intermédio do então responsável da sua delegação em Lisboa, Peter Hengstenberg». Rui Mateus, em «Contos Proibidos, Memórias de um PS desconhecido» contava assim: «Tanto quanto sei, a Fundação Ebert doaria pelo menos meio milhão de marcos alemães através da Fundação António Sérgio, primeira das fundações do PS (…) e como nada era aparentemente contabilizado (…) é praticamente impossível saber ao certo os montantes exactos que na totalidade o PS receberia dessa «solidariedade» internacional». Cinco anos sobre a publicação do livro citado, ou seja, em 1995, Rui Mateus vem mencionar um mecanismo para lá da investigação da Der Spiegel sobre os «refluxos financeiros». António Louçã reproduz: «o mecanismo de empresas alemãs indicadas pelo SPD terem financiado o PS, mediante o compromisso de o PS encaminhar depois para o SPD uma parte do financiamento. Esta seria uma forma de algumas empresas alemãs financiarem impunemente o SPD, porque a lei alemã proíbe o pagamento de subornos a partidos alemães, mas não a partidos estrangeiros».

Quanto à fonte desta passagem do livro de António Louçã o próprio nos remete para «Apontamentos sobre conversa de Rui Mateus com António Louçã, Lisboa, 12-02-2001».

O livro de Louçã abrange por um lado, a diplomacia alemã-federal antes e durante a revolução portuguesa e, por outro, a imprensa alemã e o PREC. Dois casos de estudo.

Não vou aqui estender-me muito mais. Remeto os leitores para a obra em si, um manancial de informação algo explosiva… ou não.

No livro aparece uma passagem em que se cita Vasco Lourenço. O mesmo admite que o PS terá mantido com os spinolistas, nos dias e semanas imediatamente anteriores ao golpe de 11 de Março de 1975 «mais ligações do que as que fosse conveniente haver». Em «Cruzeiro», página 397, de acordo com a conclusão do livro recente de António Louçã, Vasco Lourenço, passo a reproduzir «assume que houve uma decisão consciente do MFA no sentido de não investigar as ligações do PS com os golpistas, tendo em conta a caixa de Pandora que desse modo podia abrir-se a curta distância das eleições».

Quem acredita nos políticos?

José Luz (antigo redactor independente do Jornal «Militante Socialista» do POUS),

PS – Não uso o dito AOLP. Legenda da foto: Mário Soares e Willy Brandt (este último foi Chanceler, presidente do polémico SPD e da Internacional Socialista).

 

Louçã, António. «Uma ingerência discreta» – A Alemanha Federal e a Revolução dos Cravos». Lisboa, Parsifal, 2024. https://www.spiegel.de/politik/notfalls-auf-weisse-siedler-schiessen-a-1a608dea-0002-0001-0000-000041651528?context=issue&fbclid=IwAR149z0A_gffGsvJ4Z6NEXXgXadTNATraW2bMXpKl8EUWP82OnsJhYFKbxw

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