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Nem sempre a água correu ao simples toque do abrir uma torneira. Houve tempo, em que a água era tão livre como os passarinhos do campo. Brotava das profundezas da terra, corria abrindo sulcos no seu caminho, dando origem aos regatos que ligeiros enchiam as ribeiras.

As nascentes rebentavam espontâneas, nem sempre em locais acessíveis, contudo, as suas águas tão frescas e tão leves levavam as populações a procurá-las.

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Da terra ensopada saía um pequeno repuxo e logo, mãos habilidosas ajeitavam uma bica rudimentar: um caco, uma telha … e toda a gente bebia e a levava para casa.

Porque a água sempre foi um bem escasso e limitado, teve o homem de utilizar a sua inteligência para a tornar mais acessível a todos, construindo aquedutos, fontes e abrindo poços. Esta era a forma natural de obter esse bem precioso.

Antes do homem inventar uma forma de tornar a água prisioneira, apertada nuns tubos e a encaminhar conforme o seu desejo, teve a água liberdades e desejos…

Num local rodeado de verdes moitas havia uma nascente em terreno baldio.

Naquele tempo, quando alguém descobria uma nascente, era como descobrisse um tesouro. Logo se limpava a vegetação em redor e se abria caminho. A própria nascente se transformava em fonte, embora rudimentar. A fonte era ponto de encontro, era a alegria dos jovens, era um bem de utilidade pública.

Por ter sido descoberta debaixo dum emaranhado de moitas, passou a ficar conhecida por ‘Fonte da Moita’. O lugarejo disperso depressa se transformou num povoado de gente trabalhadora em terreno fértil. A água corria livremente como era seu desejo. Livremente regava as hortas…e a nascente corria sem nunca parar, alargando os regatos, abrindo valas, enchendo ribeiras. Nelas, as mulheres mergulhavam as pernas até aos joelhos, procuravam uma pedra grande e sarrabulhenta… e assim a roupa era bem esfregada, bem batida, bem lavada!

Depressa esta fonte se tornou famosa e rentável. O ”Filipe da água”, colocou na sua carroça um estrado com doze buracos redondos, neles colocou doze cântaros de barro e foi enchê-los à generosa fonte.

Com voz forte apregoava: – Água fresca da Moita!… Depois, metia à boca uma corneta de metal amarelo donde saía um som agudo que alertava a sua passagem. Trocava o cântaro cheio da água fresquinha por outro vazio que a freguesa lhe dava juntamente com as moedas para pagamento do precioso líquido. As populações das terras em redor eram assim abastecidas.

As nascentes começaram a ser procuradas. A do “Castelhano” e a do “Bonito” rivalizavam entre si não só pela pureza das suas águas ou pela beleza envolvente…mas pelas suas histórias e pelas suas lendas.

A mistura da História com outras histórias trouxe àquelas duas nascentes um misterioso encanto, que remonta ao princípio da nacionalidade.

História e Lenda

A Henrique, Duque de Borgonha, foi oferecido por valiosos serviços prestados ao Rei de Leão e Castela, o condado Portucalense, desde a Cantábria até à foz do Tejo. Todo esse território estava ocupado por quatro Reis Mouros e uma vasta população mourisca.

Na ampla e riquíssima “Tenda Mourisca”, erguida em local resguardado, viviam e conviviam as mouras e os filhos e filhas dos Reis Mouros, protegidos e guardados pelos mais fortes e leais guerreiros. Contudo, a mais bela de todas as mouras quebrava muitas vezes as regras de proteção a que estava sujeita. Os seus longos cabelos negros, caiam soltos pelas costas, o que a distinguia das demais companheiras. Nunca as mãos habilidosas das escravas tocaram no seu cabelo, só ela sabia verdadeiramente os cuidados que lhe devia dar: a água o banhava, o sol lhe dava brilho e o vento nos seus cabelos ondulantes, naturalmente o secavam. Sempre fora assim!

As conquistas iam desalojando e empurrando os moiros de Norte para Sul.

A sede de poder, a ambição e o calor das batalhas deixavam a nu o melhor e o pior do ser humano. A soldadesca infiltrava-se nos lugarejos e povoados… e massacrava de todas as formas a população mourisca. Por isso, a liberdade da bela moura ficou limitada.

-Nenhuma mulher moura pode sair da tenda real. Ordem do Rei! Porém, a regra era demasiadamente dura para a moura de cabelos caídos. Já lhe faltavam os habituais cuidados. O seu cabelo emaranhado e baço já era motivo de troça, mas continuava a rejeitar ajuda.

Os artifícios engenhosos de pérolas e pentes de marfim eram um deslumbramento para as demais mouras…para ela uma angústia.

Olhava tristemente para o enorme espelho de água que o Tejo refletia, queria agarrar o vento que sacudia a tenda e apanhar os raios de sol que por uma nesga se infiltravam.

O mais jovem dos quatro Reis Mouros, estava-lhe destinado desde o seu nascimento.

Ao seu bem amado foi atribuída a defesa da Tenda Real, assim, um pedido de liberdade seria rejeitado, tinha a certeza.

Passava o tempo… e o seu longo cabelo já não tinha jeito. O que fora belo, passou a ser um novelo emaranhado.

Certo dia, ao romper da aurora, enquanto quase todos dormiam, ela pé ante pé, se escapou. Diariamente repetia a façanha. Entrava e saía por uma porta secreta da tenda, que por acaso descobrira.

Não seria exatamente uma porta, mas uma abertura rasgada e sobreposta na base. Era de tal forma perfeita que dificilmente alguém de fora ou de dentro a desvendaria.

Dentro da tenda mourisca existiam várias escadas de corda pendentes das vigias disfarçadas da mesma forma. A diferença era que a abertura era sobreposta do teto até à escada.

Muitas vezes essas escadas de corda, além da permanente observação para o exterior como medida de defesa, as crianças mouras as utilizavam como baloiços.

A moura, agora de cabelos emaranhados, angustiada e triste, muitas vezes subia até às vigias. Olhava o Tejo e as suas margens. À verdura banhada pelas águas se juntavam várias árvores de grande porte.

Na margem esquerda do rio, além das habituais árvores e arbustos ribeirinhos, destacava-se um centenário eucalipto com um enorme ninho de cegonhas. Em baixo, entrelaçados nos arbustos viviam um ninho de gaivotas do Tejo, com a mãe em agonia.

A moura passava horas na vigia a observar essa maravilha da natureza e o correr das águas para o mar. Sempre à mesma hora uma enorme cegonha voava atravessando o Tejo e planava depois rente às águas trazendo no bico algo que ela não conseguia perceber. Desceu as escadas e ouviu o piar das gaivotas e o bater das enormes asas da cegonha. Ela trazia uma a uma as gaivotas pequeninas, e juntava-as à ninhada das gaivotas da margem direita que se enrolavam na abertura sobreposta da tenda. Foi por aí que a bela moura descobriu a saída.

Os seus belos cabelos já caíam longos e soltos. A água, o sol e o vento fizeram o seu trabalho.

Já murmuravam as invejosas mouras…já o velho e caduco aio do Rei a seguia.

Por detrás dos salgueiros ramalhudos e dos altos freixos, um Castelhano predador se escondia. Todos os movimentos da bela moura eram observados e o castelhano só esperava a melhor oportunidade para a raptar.

O velho caduco correu ao encontro do Rei para o avisar.

O Castelhano correu ao encontro do seu cavalo, para roubar a Bela Moura.

Entre a correria desenfreada do cavalo e a nuvem de pó que se levantava ia a moura de cabelos ao vento, levada pelo Castelhano ladrão.

O velho caduco nunca vira, nem desconfiara de ninguém, por isso se sentia culpado. Rapidamente utilizou as suas artes de magia para proteger a Moura e derrotar o castelhano.

O jovem Rei depôs as armas, para os seguir.

– Foi por aqui, Senhor, que ela desapareceu! – Apontava o caminho.

Embrenharam-se ambos num bosque densamente arborizado e fresco que até o sol tinha de pedir licença para entrar.

O constante esvoaçar dos pássaros, o murmúrio sereno das águas que caíam deixavam adivinhar que estaria por ali uma bela nascente…

O jovem Rei Mouro, vivia debaixo duma velha ponte romana, lavava-se nas águas que corriam sem parar e alimentava-se de frutos silvestres. Tinha por companhia o velho mouro caduco, que passava o dia a fazer cestos de junco.

Todos os dias ao cair da noite, revestido com folhas do bosque para passar

sem ser visto, atravessava o ribeiro, subia e descia pequenos montes e desaparecia. Procurava um sinal, uma pista, algo que lhe desse esperança.

Chegava ainda de noite, pouco antes do sol nascer.

Com as mãos tapava o rosto. O desânimo era evidente.

Quando a sede apertava, sentava-se junto à nascente de água fresca; bebia e descansava. A poucos metros desta fonte havia uma gruta toda construída em pedra maciça, pequena e apertada, teto em cúpula… só a frente estava a descoberto. A traseira estava enterrada no monte. Na fachada uma abertura quadrada por onde só uma pessoa podia passar, direito a um fosso profundo. Tudo isto dava muito que pensar ao desalentado Rei Mouro!

Da nascente corria um fraquinho fio de água, duma pureza infinita. Acumulava ali uma larga poça de água cristalina e a que sobejava escapava-se pela vala que passava junto a gruta a quem toda gente chamava de “castelhano”.

Grande confusão se instalou na sua cabeça… Só o nome da nascente lhe inspirava sentimentos de raiva e vingança. Um misto de ódio e de esperança. Uma ténue e vaga pista … Parecia que a terra os tinha engolido!

O que o Mouro caduco lhe contou fazia agora todo o sentido.

Dissera-lhe ele um dia, num momento de lucidez:

– Meu Senhor! Foi por este sítios que o malvado Castelhano escondeu a Vossa Moura Encantada.

– Encantada!… Perguntou o Rei.

– Existe por aqui uma nascente e uma gruta com o nome desse ladrão! Foi a resposta do velho Mouro.

Deixa as lutas, Senhor! Vamos no rastro dela. Eu acompanho-te.

Foram as palavras do velho caduco que me trouxeram para aqui! (comentava de si para si o jovem atormentado) e pensava:

No bosque abri uma clareira, transformei a nascente numa bela fonte, cuidei e protegi frutos silvestres: amoras, framboesas e medronhos. Plantei acácias, violetas, jasmins e amores-perfeitos.

Vou desencantá-la onde quer que ela esteja!… Foi para ela que criei tudo isto! As duas nascentes deverão estar ligadas pelo mesmo encanto… É essa a minha esperança!

– Senhor! Vem depressa! Vem ouvir o cantar da Fonte! Gritou Silas o velho Mouro.

Conforme ia parando o murmúrio das águas, ia crescendo dentro uma melodia de rara beleza a seguinte mensagem:

A Moura será tua

Disse a fada certo dia,

Ela nasceu da luz da Lua

E da chuva que caía.

 

O castelhano que t’a roubou

Nunca lhe pôde tocar

Porque ela o afogou

Em lágrimas, pró matar.

 

Olha a noite já calada!

Repara na luz da Lua,

Sou a Moira Encantada,

Que nasceu pra ser só tua.

 

A surpresa e o fantástico daquela revelação deixaram-no mudo de espanto. Depois, saltou como uma corça, gritou como um guerreiro:

-Silas! Silas!…Vou desencantá-la.

A correr, pegou no seu manto debruado a ouro, esquecendo o seu disfarce com as folhas do bosque.

Pelos mesmos caminhos onde antes levava a dúvida, leva agora uma enorme esperança.

Com uma serenidade que nunca imaginou ter, sentou-se junto da nascente do “Castelhano”.

No silêncio da noite, o gargalhar das águas foi dando lugar à melodia que ele na outra nascente já tinha ouvido e dela uma voz firme e profunda que cantava:

 

O Castelhano se afogou

Nas lágrimas do meu olhar

Sou a Moura que chorou,

Para agora poder cantar.

 

Nesta noite de luar

Pra quebrar o meu encanto

Comigo te irás banhar

E cobrir-me com teu manto.

 

Nasci da chuva e da Lua

Fui fadada pró amor,

Pra sempre vou ser tua

Meu Rei e meu Senhor!…

 

Emocionado, apurou os sentidos e olhou em redor. A partir de agora, tudo era possível. Instintivamente, correu para a gruta …Em frente, a bela Moura sorria dentro da grande poça de água que lhe servia de balneário. O jovem rei lançou-se à água e envolveu-a no seu manto real. Tomou-a nos braços, mudos e encantados saíram da água. Antes que o rei mouro tivesse oportunidade de se refazer do encanto que estava a viver, ouviu o relinchar do seu cavalo alazão, companheiro fiel nos campos de batalha. Olhou em redor e lá estava ele arreado a rigor pronto a ser montado.

Olharam-se como sempre tivessem vivido juntos, as palavras saíam naturais conforme as circunstâncias:

– Montemos, senhor!- convidou a bela Moura.

Ainda nos braços fortes do Mouro guerreiro correram para o cavalo e em trote lento, naturalmente conversavam.

– Será senhora que o meu bosque vos agrada? Perguntou.

– Veremos!-disse com um ar tão divertido que o mouro teve de rir.

A vegetação já estava à vista. Desmontaram. De mãos dadas e o cavalo à trela, entraram na clareira do bosque.

Ambos, ao mesmo tempo, surpreendidos exclamaram: Bonito! Muito bonito!…

Silas, o velho mouro, aproveitou a ausência do seu amo e colocou em redor da clareira todos os cestos de junco que tinha. Neles colocou frutos e flores. Todas aves do bosque vieram, sobrevoavam em círculo e davam lugar às outras espécies. Uma confortável tenda mourisca dava uma nova beleza ao que sempre fora bonito.

A nascente refrescava e o gargalhar das águas juntava a sua alegria à completa felicidade do casal mouro.

O velho caduco era um feiticeiro da corte dos quatro Reis Mouros e aio do jovem rei. A sua magia não deixou que a Moura fosse molestada pelo Castelhano que a roubou. O feiticeiro encantou as duas fontes e a moura, para assegurar a derrota total do ladrão.

A “Fonte do Castelhano” deu abrigo à Moura Encantada, a Moura num verdadeiro encanto deu o nome à “Fonte do Bonito”.

E durante longos anos, por magia, se ouviu o “Cantar das Fontes”!

Epílogo

Num cruzamento de linha férreas e no ponto de encontro começou o encontra-mento. Com a Revolução Industrial e o seu desenvolvimento, entre os finais do século XIX e o princípio do século XX, esse ponto onde as linhas se cruzavam passou definitivamente a chamar-se Entroncamento. Era um lugarejo sem graça e disperso.

A água que abastecia este lugar era efetivamente as nascentes que o nosso singelo conto descreve: A fonte da Moita e as nascentes do “Castelhano” a sul e a do Bonito a norte.

Na segunda metade do século XX ainda estas nascentes rivalizavam com a água canalizada.

A vegetação que em redor crescia, o murmúrio das águas, a alegria de adultos e crianças com cântaros de barro à cabeça ou bilha de barro na mão, eram um convívio natural e sadio.

Apanhavam-se amoras silvestres quando se ia à nascente de madrugada. Corria-se atrás das borboletas e apanhavam-se os pirilampos que nos alumiavam o carreiro à noite.

Aproveitando as ribeiras que corriam o ano inteiro, as indústrias da zona desenvolveram a criação de suínos. A água da fonte do Castelhano foi desviada para a indústria e a pouca água da nascente ficou imprópria para consumo.

A norte, a levíssima água da nascente do Bonito começou a ficar inquinada, porque foi feita uma plantação maciça de eucaliptos. A água corria abundante mas sem qualidade.

A Câmara Municipal resolveu aproveitar a água e fazer uma albufeira.

Presentemente, é um polo de lazer bem estruturado, tem parque de merendas, de manutenção física, piscinas, gimnodesportivo e tudo o que o Parque do Bonito tem direito.

Na realidade as duas nascentes existiam. Sobre elas a imaginação trabalhou! Assim se apresenta, O Cantar das Fontes.

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