PUB
Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Um dos vários debates importantes mas que, nem por serem importantes e até urgentes e polémicos, nunca serão alvo de grande atenção nos nossos mass media ligam-se ao caso profundo das escolas públicas e das do ensino privado, umas e outras com as suas vantagens competitivas, sendo que, naturalmente, se levarmos essa competição para uma pista de atletismo, o ensino privado correrá na pista 1 com pavimento de tartan, enquanto as escolas públicas circulam na pista 8, e possivelmente em piso de cinza. Mas, indiferentes a duas realidades socioeducativas tão distintas, como são as que constituem o universo democrático e popular da escola pública e o palco elitista (sobretudo do ponto de vista da disponibilidade financeira), aristocrata e urbano dos colégios, não faltará quem, entre a comunicação social, e já no final iminente deste ano letivo, volte a estabelecer rankings absurdos, dilatar títulos grotescos, e a criar textos de opinião que mais sugerem que são encomendados do que resultantes de uma reflexão séria de alguém ponderado e minimamente conhecedor das realidades escolares.

Na verdade, comparar estabelecimentos de ensino frequentado por comunidades estruturalmente pobres e marginais ou automarginalizadas, que os frequentam não por vocação ou motivação social, mas apenas porque o ensino é obrigatório, até uma escolaridade para si excessivamente prolongada, não é exatamente o mesmo que as condições oferecidas em estabelecimentos frequentados por jovens de famílias abastadas, que até impõem notas de acesso exorbitantemente altas (e a rivalizar com as mensalidades das respetivas propinas), e que são transportados por um motorista fardado e afetado até ao portão de entrada. E também não é o mesmo comparar as escolas de comunidades rurais, interiores, humildes, deprimidas, e em que a maioria dos pais tem uma baixa escolaridade, com outras exatamente no lado oposto do espetro social, geográfico, cultural ou dos rendimentos familiares médios. Fazê-lo não é sério, e no melhor dos casos só pode revelar ou laxismo ou mau feitio.

PUB

Há poucos dias, fruto de um feliz acaso, como são todos aqueles em que encontramos uma pessoa amiga que já não vemos há muito, esta, vivendo e trabalhando na região de Lisboa, confessou-me que tendo matriculado em anos sucessivos o filho adolescente num colégio de elite e próximo de casa, foi-se deparando com uma progressiva intolerância do filho à contrariedade, às opiniões diferentes e a, pasme-se, pensar que aos 17 anos o mundo já pouco ou nada tinha para lhe dizer. Bem pensado… A mãe também foi pensando, gradual e relutantemente, que o “príncipe cheio de convencimentos” (palavras da própria) se tinha acrisolado numa forma própria de ver o mundo, obviamente pura e perfeita, e que, fora desse casulo de seda, o que havia do lado de fora ou estava mal, ou era mal frequentado, ou era preciso destruir por ser impróprio ou antiquado… A mãe fez-me uma observação pertinente, mais ou menos assim: meti-o numa gaiola de pavões e faisões, com vista só para dentro da gaiola, e o que está de fora ou é para ignorar acerrimamente ou, se não podem evitar a sua existência, é para combater com o fervor de um godo. “Tornou-se, portanto, um fundamentalista da virtude, para ele já nem eu conto, embora lhe pague pontualmente as mensalidades, só quem pensa, age e até veste e calça como ele, a tribo dos amiguinhos do colégio, é que conta…” Ao inscrevê-lo no colégio, admite, contribuiu, sem absolutamente o desejar, para lhe limitar, deste modo, os horizontes: o mundo ficou na escala dos seus amigos caucasianos (como agora é linguisticamente correto dizer), ricos, com uma rede social praticamente fechada, e inevitavelmente neoliberais e servos de preconceitos rascas. E retirou da paleta do pintor todas as outras cores do país, da sociedade e do mundo. E condena-se por lhe ter subtraído o mundo tal como ele é, com as suas etnias e raças, condições sociais e culturais, contrastes, armadilhas e motivações diferentes e até opostas, com ruídos e uma entropia natural, que ajudam a procurar mais cenários e a obter mais soluções, ser mais tolerante e entender a complexidade. “Ao fim e ao cabo, o que eu tive na minha escola secundária, e sempre senti que assim me enriquecia…”, comenta, já em final da conversa.

Sou, como decerto a esmagadora maioria dos meus leitores, um utilizador e frequentador habitual dos recursos tecnológicos e informáticos e das vantagens que hoje nos tornam disponíveis benefícios amplos e múltiplos, procurando evitar os alçapões e os contos de fadas que lá se encontram. Tenho, portanto, deste novo mundo difundido sobretudo a partir do início do novo milénio uma perspetiva de otimismo moderado e algum controlo crítico. As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) conduziram diretamente o ser humano para a criação de uma nova era civilizacional e depois, de forma inviesada e quase imperceptível, para outra. Mas, neste estrito âmbito das TIC e dos mundos que ela destapou, facilitou ou simplificou, como a capacidade de comunicar com eficiência e rapidez e o acesso com baixos custo a uma vasta informação disponível, chats e capacidade de conhecer o que se passava globalmente quase em direto, há duas fases que convém atentar. E a fronteira que as separa, localizada no tempo por volta de 2010/2011, deve-se à descoberta pelas gigantes tecnológicas e por ação sobretudo da Inteligência Artificial, de uns certos algoritmos, igualmente inteligentes, talvez até demasiado e abusativamente inteligentes. Com esses métodos algorítmicos, os negócios desses “mega” tecnológicos, passaram a prosperar de uma forma quase exponencial, pois adquiriram a insólita capacidade de entrar nas nossas mentes e de, por via eletrónica e de softwares de códigos abertos e fechados, inferir dos nossos gostos e humores, os produtos que preferimos, o nosso clube favorito, e as áreas de conhecimento ou do lazer a que devotamos mais atenção, tempo e interesse. Até talvez tenham um melhor retrato da nossa personalidade que o que dela fazemos nós próprios. É claro que nós não somos ingratos, e agradecemos. Mas, por amor à verdade, não era bem essa a intenção das empresas geradoras destes algoritmos. O conhecimento que elas adquiriram de nós próprios foi mais ou menos um filão para o enriquecimento dos proprietários das minas. Com eles −  os algoritmos e os dados − foram capazes de atrair muitos anunciantes que sabiam agora que iam pagar, mas que o seu anúncio ia direto para os consumidores de todo o mundo que lhes interessava, os que tinham interesse nos seus produtos, e iam receber agora os anúncios de produtos ou serviços que procuravam online.

Se o leitor anda à procura na Internet de uma máquina fotográfica, vai ser torpedeado, com sedução, apego e muito marketing profissional pelas marcas e empresas do setor. Se é de um telemóvel ou de uma torradeiraou de um fixador para o cabelo de última geração ou pretende criar um evento formal ou informal e procura um parceiro (ou parceira), ou até viajar para o Polo Norte enquanto é tempo, não lhe faltarão assédios, nem propostas, nem sugestões. As “megas” tecnológicas beneficiaram com os seus algoritmos, e os anunciantes procuraram-nos como abelhas, em detrimento dos anúncios nos jornais, nas revistas ou na TV generalistas. Os “megas” tornaram-se, assim, ainda mais felizes, mas não 99,9 por cento dos seus colaboradores, escravos também da produtividade acelerada que outros algoritmos atentos criaram e impõem para serem sugados até ao tutano, que aqui não se trabalha por menos, espantando-me que isto não incomode os respetivos governos, que nem se incomodam nem regulamentam.

E tudo isto teve um efeito de perversa fragmentação social e a criação de tribos, que as redes sociais exploram sibilinamente para felicidade própria e deixando o mundo e a sociedade ainda um pouco piores, perguntando-me eu se isso ainda é preciso − e se, como espécie, não caminhamos para o clímax da nossa cretinice. E é aqui que se incubam, geram e desenvolvem os mais perigosos fanatismos. Nessas redes sociais, com o isco lançado aos anunciantes, e onde a má-língua se digitaliza, os antitaurinos só encontram antitaurinos, e cada um procura ser mais radical nesse pergaminho; os puritanos encontram-se com puritanos, verdes-alfaces com verdes-alfaces, os neoliberais com os correligionários, e assim sucessivamente. Não escutam mais ninguém nem leem outras opiniões. Nem precisam, porque eles descobriram as fórmulas e as chaves das virtudes. Desligaram-se do mundo, e tornam-se monocromáticos e, sobretudo, intolerantes, ai de quem pensar fora dos seus dogmas…

O que esta panóplia de redes sociais cria é a segmentação do mundo em frações cada vez mais ínfimas e de interesses restritos, restritíssimos, em que se aglutinam apenas com pessoas com que se identificam plenamente quer nos interesses, quer nos pontos de vista, criando uma mentalidade de tribo que depois se desenvolve no radicalismo das suas opções. Quem não pertence à tribo é acanalhado, e tornado um pária aos seus olhos. Recusam a ver, analisar ou refletir sobre o que não dominam ou lhes parece hostil, e a tendência é radicalizarem mais os seus discursos, endurecer a couraça e preparar-se para a próxima guerra mundial, aquela que Einstein não sabia como seria, sabendo todavia como seria a quarta (à pedrada e do cima das árvores).

A verdade é que, proclamando cada vez mais, na teoria, as virtudes e os valores das diversidades, da convivência e da integração nas suas múltiplas dimensões (sociais, culturais, étnicas, nacionais, religiosas, biológicas…), o mundo ruma cada vez mais no sentido oposto, e não é apenas nalguns sistemas educativos, nas redes sociais e nos populismos que se vão segregando…

PUB