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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

O Custódio Cardeta é, sempre foi, um intoxicado pelo poder, passou anos, décadas sucessivas à espera de um convite, de uma aprovação, de uma admissão a um cargo ou de um reconhecimento da sua excelência, mudou algumas vezes de partido, de aliança ou de coligação, outras vezes de ideias, outras ainda de estratégias, agregara-se à esquerda e à direita e até a novos e desconhecidos comparsas na fundação de mais alguma organização capaz de alcançar algum mando ou influência, mas foi tudo sempre em vão. Tinha ambição, les bras longs, mas nunca alguém lhe dera uma mão para chegar aos frutos no alto das árvores. Era um ressabiado, só escrevia umas crónicas ressabiadas no seu blog que era evidentemente ressabiado, e no café do Norberto, onde chegava para poiso no fim da tarde, já com o seu ar respeitável entornado e normalmente a cuspir raivas novas e antigas, a roda de amigos à volta da mesa na esplanada alargava-se por curiosidade e também por prevenção. Tratava-se sobretudo de se porem de prevenção contra as chamas, que o uísque que já vinha ao seu encontro só iria ser capaz de transformar em labaredas que disparava em todas as direções.

Ninguém, e muito menos a família e os amigos, entendia o Custódio Cardeta, a quem, quando voltava as costas, era logo o Mata Osgas, sabe-se lá porquê. Nos partidos que frequentara à espera que confirmassem os seus talentos e a visão que tinha sobre tantas matérias regionais e até internacionais, conheciam-no apenas por nunca admitir limites para as suas ambições, tudo empurrava sem pudor nem vergonha. E não perdoava o nunca ter sido convidado para um cargo, nem que fosse o de assessor adjunto de um chefe de gabinete. E era pena. Perdia muito o município, que ficava sem a sua original visão estratégica para o turismo, o museu, o convento, a sinagoga, os parques ambientais, o trânsito urbano, a indústria, o comércio e até a filosofia inerente aos parques de campismo e de estacionamento e às piscinas. E empobrecia também o país e até o planeta, que ficavam órfãos voluntários da sua abrangência e de todo o lastro histórico do seu conhecimento do mundo, com uma amplitude que ia desde a exploração e os negócios do volfrâmio na década de 1940 (com informação privilegiada e até confidencial por via do avô beirão) até à insurgência dos plásticos no mar, ao aquecimento global, à euforia das redes sociais e dos podcasts, e aos decretos do que é que se deve comer e beber, que agora passam por ternas sugestões, mas, em breve o legislador há de converter em ferozes éditos disciplinadores dos maus hábitos da plebe habituada ao toucinho e ao queijo amanteigado (já com inputs e influência do neto encarniçado lisboeta). De boina basca (homenagem aos seus tempos revolucionários, e hoje remedeio para a muita falta de cabelo, e com discurso pernóstico e incisivo, onde esmerava o uso do Francês (homenagem própria aos seus anos de emigrante), que depois decifrava aos impreparados amigos da tertúlia, e o abuso de expressões idiomáticas (em Francês, evidentemente, embora houvesse equivalentes em Português, e até mais enfáticas, ou, era a cereja, em Latim, aqui por pura erudição, para evocar o semestre na Sorbonne e com o propósito de esmagar), o Cecê (assim assinava, fazendo rococós à volta de cada letra) povoava o seu falar com os ódios que, no seu feitio picuinhas, mais estimava. E eram muitos, e veneráveis: os presidentes da câmara, das juntas, dos grémios de notáveis, dos clubes e das associações de voluntários, todos ex-amigos, as ex-mulheres, todas umas borboletas que se metamorfosearam em vadias, os filhos, uns ingratos, tal como os netos, apenas escapava um deles, radical como ele, e dos antigos correligionários o melhor que pode dizer é que nunca passaram de um comité de interesseiros brutos e ignorantes, criaturas sem ética nem vergonha, uns cafards (e que nunca o apoiaram).

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Et voilá, só havia uma forma de acalmar tanto azedume, era fazer uma barrela sobre tudo o que sabia (e sabe) dos vários meandros que conhecia, do que se tinha (e tem) passado no município, e até nos municípios vizinhos, quando as estratégias já eram intermunicipais, e fazia-o com agilidade e graça entre um par de cervejas ou de uísques. E, les jeux sont faits…, lançava-se com ousadia na destilação da raiva que lhe saía aos jorros da vesícula, aqui e ali enfeitada com alguma especulação e fantasia, e, sem nunca mencionar nomes, também fazia questão de que ninguém deixasse de perceber quem era o figurão ou a matrona que visava, esta normalmente recorrendo a sugestões, das pernas ao busto, e a um passado burlesco ou de duvidosa isenção sexual, uns favores aqui e ali.

E seguia com via verde a esporear pelo muito que sabia e agora a todos confidenciava, com um programa estudado para, com minúcia e muita alusão, mas nunca chegar à intimidade, a todos impressionar num fim de tarde bem passado como atestava o regimento de uísques, garrafas de cerveja ou de água das pedras (para os que queriam morrer cheios de saúde) alinhados sobre a mesa. E discorria. O Zagalo, o Poucas Falas, o Pião das Nicas, o Farol, o Caiçara, o Varselino, o Albuquerque…, ouviam sem enfado enquanto lubrificavam as goelas, e as decotadas Genevive, Dandara e Anelise, três diplomadas nas artes da sedução e anzol, derramavam alegres sarcasmos e risadas maliciosas a pontuar a oratória do Cecê. Era a má gestão e a pouca visão do museu, que descrevia com um tal detalhe que podia chegar ao degrau da escada ou à história de um parafuso torto que a locomotiva Amália ostentava no tejadilho, a comprovada incompetência de quem dirigia o convento, o palácio, o castelo, o trânsito, os jardins, o hotel, era a poluição da água na ribeira (“Je savais bien comment le résudre…”, eu sabia bem como resolvia aquilo…), a cultura, o turismo, os comboio ao longo da margem do rio, o campo de golfe (“Uma vergonha…”), os acessos, a covid, a zona industrial, que já devia ter sido ampliado e captado investimentos internacionais com as facilidades que agora vêm da Europa. Enfim, levara uma vida a receber convites para elaborar graciosamente diagnósticos, planos de viabilidade, projetos de financiamento, organigramas, matrizes, grelhas, guiões, monitorizações, programações, simulações, avaliações de risco, tudo ao mínimo detalhe porque ser picuinhas para ele não era só uma alcunha, mas a sua verdadeira arte e maneira de ser. E depois de meses de aplicação e método com desvelo, e apesar dos planos estarem eivados de visão e horizontes, nem para uma simples comissão de avaliação, já com avenças douradas e bom pecúlio à vista se dignaram alguma vez convidá-lo. Um cavaleiro andante do tempo dos afonsinos que começara por levar pontapés do diabo e do semelhante acabara por ficar de mal com Deus e consigo próprio. Era assim a sua vida. Ele sempre porfiava, mas também não era de se rebaixar, o seu ego jamais lhe perdoaria…

Um dia o Mata Osgas deixou de comparecer àquela tertúlia de crentes em lérias da esplanada. O que teria acontecido? Houve rumores sobre a saúde, algum internamento, a família, decerto um contratempo maior… E passaram meses… É claro que as três diplomadas bem animavam a assembleia à sombra do grande carvalho, nem sempre com métodos muito bíblicos, é verdade, mas a ausência do francês era por demasiado notória, faltava aquela verve e aquele soi-disant de quem tantas estórias que encadeava com mestria, e tanto martelava nos que um dia lhe acenaram promessas partidárias e lhe entravam na lembrança.

Um dia, já em final de uma tarde outonal, e com a assembleia da esplanada bem composta e atenta aos trinados coloridos de Genevive, Dandara e Anelise, óculos escuros e barba de três dias impecável, apeia-se de um Lamborghini amarelo descapotável, o protagonista desta história, o Cecê, lui même. A tertúlia, entre a surpresa e o mistério, silenciou-se. É claro que a pose, o caminhar e até o timbre eram os mesmos que tinham ali animado tantas tardes de verão. Mas a persona era outra, fora convidado para o Parque Temático, as notas já lhe dançavam nos olhos, finalmente era reconhecido. Não reconheceu ninguém, entrou no café próximo com a companhia, puxou da cadeira e recurvou-se servil:

̶  Faça o favor, senhora Presidente!

Foi um coup de foudre por um prato de lentilhas. Mil ressentimentos e outras tantas prosápias foram logo ali esquecidos… Monsieur Cecê era agora também o vice-secretário da madame do município.

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