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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Um dia bem passado. De manhã, na fila de um quilómetro para atestar o depósito de octanas porque as que se tinham só dava para uns 600 quilómetros, e, pelo menos, 30 dias para as suas necessidades habituais. De tarde foi ao supermercado para atestar a dispensa. Dúzias de pacotes de arroz, esparguete, packs de leite, pizzas de 12 variedades (para não ganhar fastio), latas de atum e molhinhos de brócolos. Não há nada como uma pessoa ser sábia e prevenida, e atentar à sabedoria popular: quem vai para o mar, avia-se em terra…

Descendente de navegantes corajosos e da saga longínqua da pesca ao bacalhau da Terra Nova e da Gronelândia, nas horas difíceis da greve no abastecimento de combustíveis, metade dos encartados de condução portugueses não hesitou em mostrar-se à altura das circunstâncias, e correr freneticamente para os postos de abastecimento… Sobraram as angústias dos outros, mais distraídos ou dotados de uma sensatez pouco sensata, que, nalguns casos, já não puderam sair de casa no dia seguinte. Os problemas mais graves sucedem muitas vezes não pelas suas causas originais, mas pela reação instintiva das pessoas às notícias.

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É conhecida a história de bancos que entraram em colapso porque boatos postos a correr sobre a sua iminente falência, levaram os clientes a correr para as suas delegações e resgatar o pouco ou muito que lá tinham. Os bancos entraram naturalmente em bancarrota, confirmando o teor dos boatos, que de puras mentiras se tornaram em realidades cruas. São as chamadas profecias autorrealizadas, mas a verdade é que investigações independentes posteriores mostraram à evidência que os bancos estavam consolidados e respiravam saúde financeira quando o rumor foi lançado. Foram alvo de boatos malévolos, mas o que verdadeiramente os levou à ruína (e aos depositantes e investidores que não ouviram ou não deram ouvidos aos ecos da rua) foi a reação desproporcionada e em turba da maioria dos clientes. Ninguém ganhou com isso, e muitos foram seriamente afetados.

O caso da corrida compulsiva aos combustíveis desta semana traz também à colação a hipocrisia bastante em voga do discurso corrente do politicamente correto. Em público, a narrativa é polida, solidária, cooperante e é só partilhas. Uma epifania de generosidades à escala terrestre. Mas em privado, a história é outra, mais do que a prevalência de um certo egoísmo, é o reino do vale tudo, sendo que quem habitualmente mais prédicas à solidariedade invoca, é quem, na hora de pôr em ação a doutrina, mais foge ao evangelho. No fundo, é o ser humano na sua natureza mais sociobiológica e jurássica. A sociedade procura com as suas normas, costumes, alguma ética e todo o esplendor da cultura moldar-nos para podermos ser mais justos, imparciais, corteses e cooperantes para construir algo maior que cada um de nós. Mas numa hora má, tudo é esquecido de uma assentada e prevalece a ditadura do nosso cérebro reptiliano, que derrota, sem qualquer hesitação, as hesitações solidárias do neocórtex, surgido evolutivamente da própria evolução da sociedade humana.

E a verdade é que, apesar de todas as considerações e críticas que se possam fazer, foi o cérebro reptiliano, general dos nossos instintos e da maioria dos egoísmos, que permitiu que o ser humano tenha sobrevivido até hoje. Por mais comentários e censuras que se façam, na próxima vez que uma ameaça de uma greve ou um outro qualquer risco surgir no horizonte, vão voltar a formar-se quilómetros de filas e dispensas atulhadas até ao teto com víveres que irão ganhar bolor. Somos assim, e não podemos ser de outro modo (embora eu ainda acredite que podemos melhorar um pouco). Tal como a natureza tem horror ao vácuo, nós temos uma aflitiva aversão à escassez. De combustíveis, de arroz, de simples molhinhos de brócolos ou de outro bem, essencial ou que tornámos desnecessariamente necessário. Talvez porque os nossos antepassados sofreram a escassez no cerne mais íntimo da sua natureza, e a nossa espécie só cá esteja por sermos mesmo assim. Estamos dependentes desta ditadura dos genes, mas eu ainda sou dos que acreditam que da próxima vez a fila já só tenha uns 900 metros…

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