
Sabe-se já que o acesso às touradas e a outros espetáculos tauromáquicos vai ser um dos temas contemplados pela gáspea governativa do novo Governo Constitucional de António Costa e do PS, anunciando-se também já que a idade mínima para poder assistir a esses espetáculos subirá dos 12 anos, atualmente em vigor, para os 16 que o Governo deverá propor como medida de “proteção aos consumidores”. Uns, como o PAN e o Bloco de Esquerda, acham de menos, porque consideram intolerável tudo o que seja abaixo da proibição; outros, dispersos e fragmentados pelos maiores partidos, pensam que é demais, e se deveria garantir com mais eficácia e menos restrições o direito constitucional à cultura, afiançando que a tauromaquia o é.
Em maio de 2012, a região de Emilia Romagna, na zona mais a norte de Itália, tremeu com estrondo com o terramoto que deixou desolação e muitos mortos, e semeou miséria por muitas das suas cidades, como Bolonha e Modena. As réplicas sucederam-se e, nove dias mais tarde, um novo sismo de magnitude idêntica viria a ampliar e concluir os danos iniciados com o primeiro abalo, deixando casas arrasadas, gente sem abrigo, milhões de euros de prejuízo e uma herança de escombros, mais mortes e muito pessimismo.
De entre o muito que se perdeu materialmente em Emilia Romagna, os maiores danos incidiram sobre o icónico queijo da região, o parmesão regiano, um batalhão de calorias e uma espantosa concentração de colesterol LDL (o mau colesterol), mas um festim para o paladar e para a gastronomia italiana. Com os tremores de terra centenas de milhares de quilos dos queijos recolhidos nos armazéns caíram e ficaram danificados, e as fábricas sofreram com as roturas e sobretudo ameaçadas de nunca mais reabrirem. Eram negócios de várias gerações que se dedicavam a um produto prestigiado e que uma fatalidade parecia condenar de forma irreversível. E o que fizeram as gentes de Emilia Romagna e de outras regiões de Itália, não só os admiradores incondicionais das qualidades do parmesão, mas também os detractores que criticavam o seu teor de gordura, mas reconheciam o seu enorme impacto social e económico (tão importante que os bancos aceitavam o pagamento de juros com queijos cotados a 27 euros o quilo)?
Impulsionado pelo chef Massimo Bottura, que criou logo receitas novas com o parmesão, um poderoso movimento de solidariedade, que recorreu também ao poder das redes sociais e da Internet, avançou, angariaram-se fundos e patrocinou-se um evento global que foi um sucesso. Todos os queijos caídos nos sismos acabaram por ser vendidos como reflexo desse ambiente, nenhuma queijaria encerrou e ninguém foi despedido. A indústria campeã do colesterol duvidoso fora salva porque se reconhecia que o parmesão tinha um alcance histórico, económico, social e até cultural. A sua importância global transcendia as suas imperfeições, e num período sensível todos foram capazes de compreender isso.
É claro que um queijo prestigiado, caro, feito com mil especificações de produção e que seduz muitos apreciadores não é uma corrida de touros, que galvaniza, por outro lado, os seus aficionados. E também tenho consciência de que todas as comparações são um pouco odiosas. Mas para lá destes aspetos, muitos outros ligam as duas narrativas, a começar pela sua tradição e até ancestralidade, passando pelo peso económico e social, e notando o prestígio conseguido não só nos seus países como também internacionalmente. Eu não sou aficionado pelas lides de touros, embora admita a admiração e respeito que em geral os forcados me merecem, e compreendo que numa faena um touro sofre para além dos limites admissíveis. E não deixo de salientar este aspeto da realidade. Mas o que a cruzada antitaurina anuncia vai muito para além disto. Lidando com as taxas de IVA para os espetáculos tauromáquicos, pressionando as transmissões na televisão, manifestando-se em soberbas minorias diante das entradas para as garraiadas, alterando as idades de acesso às praças de touros e recorrendo a muitas outras formas de condicionamento e pressão, o que ela pretende é a uniformização da sociedade pelo seu próprio gosto, como se tivessem tido uma revelação e agora a quisessem impor para a purificação das almas. A Constituição Portuguesa, que reconhece e garante o direito do acesso à cultura, não pode andar ao sabor dos gostos pessoais e mais ou menos radicais destes aprendizes de déspotas, que julgam ter visto uma aparição, e que os outros são uns patetas que precisam de ser conduzidos como uma manada. Não é de limitação em limitação, aumentando hoje as taxas do IVA e amanhã as idades mínimas de acesso às lides que esse acesso é garantido. Uma sociedade que se radicaliza em uniformidades impostas por esclarecidos empobrece sempre. Melhor seria que se visse na tauromaquia uma atividade a que o país está “ligado” e onde ele próprio se destacou e destaca, com toureiros, cavaleiros e ganadarias ao nível dos melhores do mundo, e interesses económicos consideráveis, havendo decerto formas de atenuar bastante o sofrimento dos animais, e para isso já foram adiantadas algumas alternativas. O queijo parmesão e a criativa solidariedade de Massimo Bottura e dos de Emilia Romagna poderiam servir de inspiração e ser uma lição com proveito para todos, mas nós preferimos a liquidação (sumária ou por morte lenta, que é a que está mais à vista com os arranjos políticos na Assembleia da República) de uma atividade que muitas vezes se cruzou com a evolução do próprio país ao ponto de D. Sebastião ter mesmo pedido ao Papa Pio V e convencido o Papa Gregório para que revogassem a bula que as proibia, mas ninguém respeitava. Mas esses eram tempos em que mandava a Inquisição, e referi-lo não é grande inspiração para ninguém…