Há coisas em nós que não se apagam. Não importa quantas versões de nós próprios vamos vestindo ao longo da vida, há traços que ficam, silenciosos, escondidos sob a pele da memória. São marcas d’água, invisíveis à primeira vista, mas inconfundíveis na essência. Uma espécie de impressão digital da alma.
A marca d’água é tudo aquilo que levamos connosco mesmo quando julgamos que deixámos tudo para trás. Não é feita de conquistas, nem de medalhas, nem sequer das dores visíveis. É feita de silêncios. Daquela palavra que nunca dissemos, da lágrima que engolimos num momento em que gritar nos parecia proibido. É feita do olhar de alguém que já não está, mas ainda vive algures no nosso gesto mais automático. É a casa onde crescemos. O cheiro da gaveta onde guardávamos os segredos. O som da porta a fechar-se naquele dia em que a infância nos escapou por entre os dedos.
Há quem passe a vida a tentar apagar essas marcas, como quem tenta alisar uma folha que já foi amarrotada. Mas há vincos que não se desfazem. E talvez não devam. Porque é aí que mora o que temos de mais genuíno. O que nos molda. O que nos revela.
A marca d’água é o medo que não confessamos a ninguém. A força que surge no meio do caos, quando já não tínhamos mais nada onde nos agarrar. É a vontade de ser mais, não para provar algo aos outros, mas para honrar o que já fomos e sobreviver ao que não queríamos ter sido. É, no fundo, o fio condutor da nossa história, mesmo quando perdemos o enredo.
Quantas vezes nos perguntamos quem somos, como se a resposta estivesse no nome que usamos, na profissão que temos, no papel que desempenhamos? E se, na verdade, quem somos estiver guardado nessa marca discreta, nesse fragmento de verdade que se cola a nós como se fosse pele? Porque quando tudo nos é tirado, o que sobra? Quando já ninguém espera nada de nós, quem escolhemos ser?
É fácil contar a nossa história a partir dos capítulos de sucesso. Mais difícil é encarar as entrelinhas, aquelas onde chorámos sozinhos, onde pensámos desistir, onde morremos um bocadinho por dentro e depois renascemos sem aplausos. A marca d’água está aí. No invisível que nos sustém.
Talvez a nossa missão mais urgente não seja reinventarmo-nos constantemente, mas aprender a ler essa marca. A aceitá-la. E, quem sabe, usá-la para deixar a nossa própria marca no mundo. Não uma marca feita de likes, de reconhecimento ou de frases bonitas. Mas uma marca viva. Autêntica. Que toque alguém da mesma forma que, um dia, algo nos tocou a nós.
Porque no fim, quando tudo se cala, quando as luzes se apagam e os rostos se esquecem, não levamos connosco o que conquistámos. Levamos o que nos transformou. Levamos o que nos moldou em silêncio. Levamos a nossa marca d’água. E é com ela que, mesmo sem dar por isso, tocamos os outros. Como se a alma tivesse o poder de deixar uma pegada onde nunca estivemos fisicamente. Como se viver, no fundo, fosse isso: deixar rasto num lugar invisível.
SANDRA MAY
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