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Ando há uns dias a pensar nesta crónica, a escavar nas várias camadas e esbarro sempre na mesma pedra. Mudo de lugar, bebo uma cidra ou vou passear o cão, regresso e volto a escavar, cada vez mais fundo, e à medida que avanço, pequenas ideias de pechisbeque, só pechisbeque. Ignoro-as. Às tantas… a pedra! outra vez a pedra! Um bloco de mármore a perseguir-me, a desafiar-me. Digo-lhe que não, hoje não, amanhã! Depois recosto-me no sofá, apago a luz, e a magana da pedra vem sentar-se a meu lado, a olhar-me de banda, a magana para mim:

– “… está-se bem aqui, não está?!”

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Vou contar até dez, se não for suficiente conto mais dez. (Porque diabo não decidi ser pasteleiro em vez de escritor?) Ainda não cheguei a três e já estou sentado à secretária com as ferramentas do ofício, martelo e escopro, que é com elas que escrevo e avanço no labirinto das folhas. Preparo-me para extrair a frase de abertura. Aquela que determinará o tom. À primeira martelada descasco uma lasca:

A infância é uma cor que desiste!

Bem, não é má. Mas sinceramente parece-me faltar-lhe espessura, é um tanto ou quanto pantufa de quarto. Uma frase de colar no Facebook. Não gosto! Vou tentar outra vez, mas desta vez com uma pancada mais penetrante, a rondar o osso:

Um homem é uma criança que se contaminou de cinzento!

Sopro. Tiro-lhe o pó e percebo se tem firmeza. Inquietam-me as frases empoeiradas e moles. Percebo que esta breve linha me arranha algures, tento perceber onde, persisto, folheio a memória até ao lugar da cicatriz e encontro-a! Finalmente esta crónica acaba de ganhar a sua raiz.

Quando olho já não vejo apenas mármore, antes um rosto de cinquenta e poucos anos, calvo, umas quantas rugas prematuras, precipícios à custa de perder uma e outra vez, e depois continuar a caminhar, a acordar todos os dias. Os seus lábios sorriem, mas percebo claramente que é um movimento ilusionista, um fogo de artificio para desviar a atenção dos mais distraídos. Percebo que nos seus olhos prosperam escarpas e nuvens escuras, como se o inverno andasse por ali a fabricar chuva, mesmo nos dias de sol.

O que me queres mostrar? – Pergunto-lhe. E ele a sorrir, sempre a sorrir, pergunta se quero ir com ele à casa dos muros altos. Que vai lá todas as quartas e sábados para ver a filha, não vá ela precisar de alguma coisinha. Já se sabe como são os miúdos hoje em dia, ansiosos por independência, de seguirem caminho, já se sabe…

– Sim, eu vou contigo, o que me queres mostrar? – insisto.

Quando chegamos, uma florista nas imediações, com uma ternura discreta:

– Então Luís, vens ver a tua menina? Leva-lhe esta gerbera. Esta ofereço eu.

Ele agradece. Responde que a filha vai gostar e sorri, o Luís sorri sempre como um coxo apoiado na bengala. Lentamente o portão abre-se e entramos. Diz-me que a menina dele está lá para diante, num corredor perpendicular ao centro, lugar sossegado, rodeado de ciprestes onde os corvos pairam às vezes. Ouve-se apenas vento e silêncio. Quando chega, primeiro dobra-se um bocadinho e depois vejo-o ir arriando… como quem desiste. Acaba por se deitar ao lado dela, muito agarrado a ela. Os dentes cerrados deixam escapar-lhe um conjunto de sons e guinchos que doem por toda a parte. O seu punho cerrado, pousado naquela pedra, naquele mármore frio, tem o tamanho exato do coração. E bate… e bate… por vezes com força.

Às tantas, já mais recomposto, diz-me que a cor laranja da gerbera fica bonita ao lado da fotografia da filha, onde a cor tem vindo a desistir aos poucos.

Respondo que sim. Que fica.

Sempre que pais e mães perdem algum filho, questiono-me como conseguirão eles voltar a sorrir com a desordem tresmalhada das coisas. Se calhar a alegria da vida passa por ouvir o barulho das ondas a desfazerem-se na praia, ou o vento a passar nos ciprestes onde os corvos pairam às vezes. Se calhar…

Para terminar, lembrei-me agora de uma frase belíssima do Victor Hugo, que diz assim:

A sombra é sempre negra, mesmo a que cai dos cisnes”

Alguns sorrisos são assim.

Telmo Mendes

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