Passo por uma das artérias do centro da cidade e, lado a lado, um snack-bar para restaurar o protoplasma e uma das muitas novas igrejas que agora a adornam (ocupando desde os locais mais óbvios aos mais escusos) para recuperar o desânimo quando os estados de alma batem no fundo. Mesmo ao lado do que era um majestático e clássico café, que recordo com nostalgia pelas tertúlias de adolescência e até já de jovem adulto, onde falávamos de Marx e de Proudhon, de filosofias sociais, do existencialismo de Sartre e de Camus, e até queríamos mudar a sociedade e o mundo, como se isso dependesse de um clique de dedos. Ou então jogava-se num tabuleiro de damas numa mesa do canto, junto à janela, ou descia-se alguns degraus para exercitar umas tacadas à volta da mesa de bilhar ou de snooker. Eram tempos das grandes ideais e do desconhecimento dos impossíveis, o Entroncamento era ainda uma vila marcadamente ferroviária, os homens iam com baús ou marmitas para os comboios, as mulheres tinham tempo para desabafar e queixarem-se da carestia da vida, o Silvino, sempre de bicicleta, anunciava pelas ruas O Século, o Diário Popular ou o Diário de Lisboa, o Capela, de bigode à Clark Gable, engraxava os sapatos à porta do café e o senhor Maurício, sempre afável e popular entre as crianças que encontrava, fazia os seus fretes e serviços numa carroça puxada pela famosa “Atmosfera”. Eram esses tempos, que nem parecem assim tão remotos, tempos diferentes, esse Entroncamento faleceu, e a sua morte não se deveu a nenhum colapso. Foi natural, tudo muda, tudo evolui, tudo passa. Provavelmente, a uma proporção significativa dos leitores boa parte destes nomes ou episódios até já pouco ou nada diga. É tempo passado.
Recordo-me de, inseridos numa crónica no EOL de há cerca de dois anos, estava-se ainda num período de algum confinamento, ter referido alguns números da população estrangeira já a viver no Entroncamento. Eram números impressionantes que davam conta do contingente de pessoas naturais predominantemente do Brasil, Angola, Cabo Verde, e também da Ucrânia e da Índia, além de outras nacionalidades que chegavam à cidade. Sucede é que, desde essa altura, em agosto de 2022, e até hoje, a perceção que as pessoas comuns da cidade têm (e que não se deve afastar muito da realidade), é a de que a população imigrante, com destaque para os países que falam a nossa língua, embora a pronunciem com um sotaque diferente, aumentou incomensuravelmente, até numa escala diferente − e há muita gente diferente dos entroncamentenses que habitam há mais tempo na cidade. E todo este impacto causa alguma impressão, é muito comum que as conversas de circunstância das pessoas habituadas a um padrão comum gerado pela relativa homogeneidade da população desembarquem nestas enormes alterações demográficas no burgo. E quando as alterações são assim tão significativas e abruptas, e sobretudo se isso servir algumas forças sociais ou até políticas, e demagogos sem responsabilidade que acreditam que poderão crescer em votos ou influência gerando alguns alarmes ao agitarem certos preconceitos, gera-se um problema. Por ironia, falam como se o Entroncamento fosse uma grande quinta e eles os capatazes − quem põe e dispõe de acordo com as suas crenças e interesses. O problema é que estamos numa sociedade aberta. E já estamos no século XXI…
A verdade é que, tomada globalmente, a comunidade dos novos cidadãos residentes, com o Brasil, destacado, à frente (tendo mesmo criado há algum tempo uma associação que resolve as suas dificuldades, quase sempre burocráticas, e zela pelos direitos que lhes assistem), e se eu tenho o direito de ajuizar, tem-se sabido integrar de modo exemplar na cidade. Poderá já ter ocorrido algum atrito, até algum episódio mais grave, mas a ideia que tenho, e é essa também a convicção de outros amigos com quem falo, é a de que tem havido harmonia, cordialidade e a criação de um entendimento recíproco. Poderá haver um dia em que jogue a seleção brasileira (o escrete, como dizem), ou algum aniversário para comemorar num grupo de amigos, e o samba ou o forró sejam mais efusivos e durem até mais tarde, mas viver com outras pessoas ao lado pede alguma tolerância, para que um dia também a tenham connosco quando a seleção lusa ganha ou o nosso clube vença o campeonato. Os nossos novos concidadãos podem ter credos religiosos distintos dos que temos (quem os tem), terem idiomas ou serem de etnias diferentes, ou até ter uma cor de pele distinta e com mais ou menos melanina, devem ter mesmo culturas e valores algo distintos, mas isso não é razão para animosidades. E não tem sido. São pessoas que vieram para trabalhar ao nosso lado, e, portanto, passam a ser dos nossos, como um novo jogador contratado por um clube, por lhe poder ser útil nalguns aspetos ou carências. Pessoalmente, conheci já alguns destes novos concidadãos e até criei laços de amizade com alguns deles, que considero pessoas inteligentes, cultas, competentes, com valores respeitáveis e até com novas visões do que é a vida. De uma maneira geral, há cortesia e respeito.
O caso mais sensível nesta nova realidade social no Entroncamento mora nas escolas, onde a proporção dos alunos estrangeiros nas turmas desde os primeiros anos até ao fim do ensino secundário é ainda maior do que entre a população global. Os pais e as mães desses alunos (que vieram para ter uma melhor qualidade de vida ou para fugirem a quotidianos pouco pacíficos nos seus países de origem) estão de uma forma geral integrados socialmente, têm os seus empregos (ou criaram os seus próprios negócios, alguns inovadores, e criaram novos postos de trabalho), vivem nas habitações que compraram ou alugaram, e dinamizaram, sem margem para dúvidas, a economia e a vida na cidade. Mas se estes pais e estas mães imigrantes estão estabelecidos e integrados na vida coletiva porque já se tinham mentalmente preparado para viver e trabalhar num novo país e numa nova cidade, o mesmo não acontece com os seus filhos. E a escola, as suas direções, os professores e o Ministério da Educação vão precisar, em conjunto e per se, de um novo paradigma para poderem integrar estes alunos, e fazê-los sentir que eles também pertencem a algo maior, que é Portugal e a sua sociedade, não se sentindo de modo algum excluídos dela e dos seus propósitos. O sentimento de exclusão é terrível. E há problemas que devem ser evitados com medidas e gestos a muita distância do momento em que possam eventualmente ocorrer. E, neste caso, os exemplos ocorridos já em alguns países europeus, como a França ou a Inglaterra, com situações similares, mas mais antigas, são experiências que devemos ser capazes de analisar e interpretar para agir com estratégias de prevenção e visão de futuro.