Conheci a Hermenegilda à entrada de um cineclube, por ocasião do centenário do nascimento de Rita Hayworth. Preparava-me para ver A dama de Xangai, quando na bilheteira, depois de vários minutos embaraçados a vasculhar a bolsa a tiracolo, dei conta que deixara a carteira em casa. Estava para dar corda aos sapatos, irritada quase até às lágrimas, quando ela, que esperava atrás de mim na fila, se ofereceu para me pagar o bilhete. Somos amigas até hoje.
Na família da Hermenegilda há uma Hermenegilda por geração. Foi a trisavó, depois a irmã mais velha da bisavó, a seguir a tia-avó, depois a tia, ela, e a mais nova é a sobrinhita, a quem todos chamam Gi. Reza a lenda que na linhagem da família, as Hermenegildas remontam à Idade Média. Naturalmente a minha amiga detesta ser Hermenegilda e reponde pelo diminutivo Gilda. Gostaria de ter nascido Sofia, Patrícia, Matilde ou com outro nome qualquer mais leve. Até porque por trás do seu nome existe supostamente uma espécie de maldição familiar, pois as Hermenegildas de que há memória acabaram todas sozinhas. Tirando a trisavó da Gilda, que enviuvou um ano após ter casado e que enterrou o marido com o filho na barriga, todas as outras ficaram solteiras.
Uma vez que a Gi ainda tem três anos, nos jantares de família a minha amiga torna-se o centro indesejado das atenções quando logo nas entradas alguém lhe atira à queima-roupa: Ó Gilda, já anda mouro na costa ou continua tudo cristão? A pergunta nasce da preocupação sincera dos parentes com a maldição das Hermenegildas desemparceiradas, mas a mim parece-me que seria mais sensato acabar simplesmente com as Hermenegildas e pronto. Mas essa é a minha opinião e a da Gilda, não a da sua família. E basta que, por geração, uma pessoa que tenha uma filha queira manter a tradição para ela continuar, como fez o Luís, o irmão da Gilda. A minha amiga implorou-lhe que não chamasse Hermenegilda à filha, mas ele fez questão. É interessante notar como às vezes perpetuamos certas tradições quase por inércia, sem as questionar. Fazem falta Hermenegildas nesta família? Farão mais falta do que Felisbelas, Julietas ou Palmiras? Será que alguma das antepassadas homónimas da minha amiga gostou de ser Hermenegilda? A tia da Gilda diz que um nome assim é quase uma corcunda que a pessoa tem de carregar toda a vida. Exageros à parte, a verdade é que quando a família se junta, a minha amiga já sabe que se vai fazer tiro ao alvo à sua pessoa, e prepara o peito para receber as setas. Viram-se à mesa as cabeças na sua direcção, entre a curiosidade e a condescendência, após lhe perguntarem como vai ela de amores. Gilda sorri, faz que entra na onda, a esforçar-se por fingir que acha graça à conversa, mas para atordoar os sentidos serve-se do jarro de vinho.
Gilda é o nome de um filme de Rita Hayworth de 1946 que marca a carreira da actriz e que consolida a sua imagem de mulher fatal. Numa homenagem que ela detestou, nesse mesmo ano de 1946, nos ensaios nucleares levados a cabo pelos Estados Unidos no atol de Bikini, no Pacífico, uma bomba recebe o nome de Gilda, levando mesmo o seu retrato estampado. Curiosamente, Rita Hayworth não correu nunca o risco de acabar solteira. Na verdade, casou-se cinco vezes, o que não significa que tenha sido feliz, pois como ela mesma terá dito, os homens iam para a cama com a Gilda mas depois acordavam era com ela, a mulher, e não a famosa personagem.
A minha Gilda não é nenhum símbolo sexual. Trabalha numa farmacêutica em Londres e só vem a Portugal praticamente para comparecer nestes jantares de família. Tem dois mestrados, um doutoramento e uma vida muito preenchida. No entanto, no ano passado, não sei se por ter-lhe começado a pesar demais nas costas o peso da maldição, disse-me que decidira mudar oficialmente de nome. Para o diabo mais a Hermenegilda!
A própria Rita Hayworth não nasceu Rita, mas Margarita Carmen Cansino. A Gilda agora chama-se Rita, e não vê a hora de dar a notícia no próximo jantar de família.