Éramos cinco e estávamos destinados aos maiores sucessos, a coisas muito maiores do que nós. No nosso íntimo nem sequer era viável outra possibilidade e sabíamos que, em escassos anos, estaríamos condenados à clausura que protege as grandes estrelas, com as nossas vidas resguardadas em quartos de hotel e incapazes de qualquer normalidade.
Uma vez por semana, normalmente às quartas, quando não tínhamos aulas no período da tarde, deslocávamo-nos para casa do Jota, cuja família (chiquíssima!) dispunha de um salão de festas privado no meio de um laranjal. Ficávamos por lá, durante horas, a experimentar formas de exaltar o maravilhamento e imaginação de um público inventado, maioritariamente composto pelas intocáveis raparigas giras do secundário. Recordo até, de forma muito nítida, o dia em que escrevemos os nossos próprios mandamentos, um caderno de diretrizes, qual repositório de conduta, que regeria o nosso projeto aquando do impacto da fama. Eram coisas para levar muito a sério e que impediriam que nos contaminássemos de manias e devaneios após o sucesso.
Os adultos, cheios de sonhos caducados, diziam-nos que a fama era um monstro que devorava as pessoas, e que as levava à droga, ao descaminho e, mais cedo ou mais tarde, todos os artistas viravam gente bizarra e escura por dentro. Nós dizíamos que seríamos diferentes, a maior banda portuguesa, pronta a alcançar o mesmo sucesso que os Beatles, Elvis ou os Rolling Stones. Perto de nós os Xutos & Pontapés não passariam de um conjuntinho de baile. E tudo isto estava certo e até seria legitimo de apetecer, não fôssemos nós miúdos de apenas doze anos, muito preenchidos de compromisso e benigna consciência do estrelato, porém… sem um único instrumento musical!
Éramos cinco miúdos engraçados, com corpitos de pintassilgo e ainda sem névoas nem maleitas, a ensaiar conquistas como quem brinca ao futuro. Cada um de nós sabia de antemão o que iria tocar, que posição ocupar no palco, o que dizer entre as canções, a roupa que vestir, a ordem das músicas alegres ou tristes… éramos a melhor banda do mundo e simultaneamente a mais silenciosa.
Mesmo assim, os “ensaios” sucediam-se. Os instrumentos haveriam de surgir, talvez por mistérios divinos ou de relações familiares. Não havia como não acreditar nessa possibilidade. A música, como o sangue, apenas acontecia silenciosamente dentro de nós e estendia-se pelos nossos sonhos e gestos até muito para lá das nuvens. Mesmo sem instrumentos, estava tudo certo. Éramos uma banda sem som… e estava tudo certo!
A determinada altura, como ramos de árvores, todos mudámos de escola, alguns mudaram de casa e seguimos caminhos diferentes. Deixámos de ter informação uns dos outros, perdemo-nos o rasto, mas ao contrário de muitas relações da infância que se dissipam no crescer, nós nunca nos tornámos irreconhecíveis e a cumplicidade que criámos jamais prescreveu.
Hoje, em profunda reflexão, assumo que a banda sem som talvez tenha sido o meu primeiro poema vivo. Como uma semente alojada na lonjura da meninice.
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