Lembro-me daquela vez em que a minha avó Maria me telefonou, rente à noite, a perguntar quando é que me dava jeito passar lá por casa. Notei-lhe uma certa inquietação, a voz esbaforida, como se metade do peito lhe saísse pela boca. Entre palavras atabalhoadas e muita hesitação, a avó lá foi teimando para que eu fosse o mais rápido possível, que ela e o meu avô João estavam ainda assarapantados e por causa disso não se conseguia explicar muito bem, mas nos entremeios lá me adiantou que o meu avô João tinha morto um bicho de um cabrão!
– Como assim, um bicho de um cabrão?
– Ai filho! nunca vimos um bicho a rabiar como aquele!
– Mas o avô matou-o?!
– Sim! teve de lhe espetar com a forquilha nos cornos!
Partindo do princípio que a minha avó Maria, pessoa devota e que nem sempre distingue os poderes divinos da realidade, dizer que o meu avô tinha morto um bicho com uma forquilha… considerei imediatamente que a forquilha fosse coisa para ser levada em absoluta consideração. Já o bicho de um cabrão, quase certamente, seria coisa do deslumbre e imaginário cristão da velhota.
No caminho, ocorreu-me que talvez alguma cobra de tamanho exagerado tivesse surgido do meio das couves ou então algum bode chifrudo, daquele danados para a cornada, vindo de outros pastos e que, doido da moina, havia galgado para dentro dos muros da horta, sei lá.
Quando cheguei a casa dos meus avós, na Praia do Ribatejo, já estavam ambos à minha espera, junto do portão. O meu avô com o mesmo sorriso de sempre e que nunca perdeu durante a vida, fosse qual fosse a situação, enquanto a minha avó Maria, deserta para se chegar à frente e contar toda a história à sua maneira, cheia de vocábulos, gestos e coisas do diabo.
Ora, com isto, eu tinha de ver o bicho antes de qualquer consideração e lá fui andando até ao lugar onde dito-cujo se encontrava, pendurado pelas patas, numa gloriosa exibição.
O que se passou, segundo o que consegui apurar e após eliminar coisas sobre a existência de Deus e outras forças divinas, foi o seguinte:
Ainda o sino da igreja não tinha batido as seis, quando o meu avô desceu à horta para realizar o habitual regadio do fim da tarde. Como sempre, ligou o furo, esticou as mangueiras e foi ajeitando a terra com a sachola, para preparar a passagem da água até os talhões das couves, das alfaces, pepinos e afins.
Enquanto a água ia avançando sem pressa, o meu avô sempre aproveitava para trincar umas ameixas, sumarentas, colhidas logo ali, como se fossem diamantes vermelhos de comer. Há demasiadas coisas bonitas nas rotinas mais simples da vida. Aqueles eram momentos em que o avô se alinhava com a vida, parecendo que o sol, no lugar de cair, desaguava dentro dele. Talvez fosse esse o seu segredo para ser feliz e receber todas as pessoas com um sorriso maior do que ele.
E foi no meio desta sua paz que, naquele dia, aconteceu uma estranheza. Consta que, inicialmente, um zumbido anómalo começou a rondar pela horta. O meu avô decidiu manter-se quieto, estátua, com os olhos a perscrutarem tudo ao seu redor. Ouvira falar de tragédias causadas por uma tal de Vespa Asiática, no Café do Chico alguém havia dito serem quase do tamanho dos pardais e terem um ferrão da grossura do dedo mindinho (vai lá vai!!). Vai nisto, o bicho mostrou-se finalmente e aproximou-se o suficiente para que o meu avô lhe visse os olhos vermelhos e para aí umas seis patas! Coisa assustadora, animal sem qualquer pelagem nem penugem, com a pele completamente negra, como são todos os bichos do diabo, naturalmente.
O meu avô apercebeu-se que tinha uma forquilha encostada a uma das oliveiras, a poucos metros de onde se encontrava. O bicho começou a abeirar-se cada vez mais, ao mesmo tempo que ele, como quem não quer a coisa, foi dando passos na direção da ferramenta. O bicho cada vez mais perto, cada vez mais perto, e o meu avô com o coração a bater no corpo todo, pum-pum, pum-pum, pum-pum, ah! bicho de um cabrão!
Só havia uma coisa a fazer: Assim que alcançou a forquilha, qual Deus Poseidon ou Aquaman das lezírias, o meu avô João arremessou-a na direção do bicho, arrancando-lhe imediatamente uma pata. Aquilo, estonteado, tombou no chão, saltando, corrupiando, fazendo grunhidos esquisitos. Nesse instante o meu avô não foi de modas e, antes que o bicho arribasse, espetou-lhe a forquilha no dorso, uma e outra vez.
Perplexo e sem reconhecer pássaro ou besta com aquele corpo e fisionomia, o meu avô não hesitou e levou-o espetado nos dentes da forquilha, ainda a estrebuchar, até à entrada da horta, onde havia um bidon cheio de água. Mergulhou-o até que o bicho se aquietou definitivamente e os olhos vermelhos, próprios das coisas do diabo, se extinguiram.
Enquanto a minha avó me contava todos estes detalhes, e mais outros tantos, sobre tamanha façanha. Eu ia olhando o cadáver do bicho, cheio de remorsos por vê-lo ali derrotado, sem qualquer compaixão, com o corpo todo perfurado, desmembrado e, ainda por cima, submetido a afogamento para que não restassem dúvidas sobre a sua morte.
O bicho de um cabrão não era cobra nem bode chifrudo, nem pássaro algum que sofrera uma mutação devido a excesso de exposição ao enxofre das chaminés do Caima, nada disso, meus amigos! O bicho era afinal… um drone! – Um drone manobrado por alguém que, armado aos cucos, quis fazer uma gracinha e foi meter-se na vida de um velhote de cepa rija, que apenas aproveitava para regar a sua hortazita e trincar umas ameixas, sumarentas, colhidas logo ali, como se fossem diamantes vermelhos de comer.
Toma e embrulha… bicho de um cabrão.
Telmo Mendes
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