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É frequente sentar-me com o intuito de escrever sobre um determinado tema e não conseguir. São momentos complexos, em que todas as palavras descem até ao tecido da página desarticuladas e frouxas, como se fossem coisas solteiras e sem temperatura. Isto advém do facto de eu escrever maioritariamente por inquietação. Sou um tipo de escritor que necessita da ferramenta da apoquentação para que as palavras digam o que lhes pertence. Sem esse elixir escrevo em esforço, como se rasurasse apenas.

Inicialmente, pretendia que esta crónica abordasse a relação, natureza e origem do natal, bem como a forma como a igreja agrilhoou Jesus Cristo ao 25 de dezembro e, posteriormente, à conta de medo, morte, criatividade e muitos devaneios, lá conseguiu fabricar a maior história de todos os tempos. Era uma crónica provocadora e que poderia ferir a suscetibilidade das pessoas mais conservadoras.

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Enquanto escritor, tenho-me pautado por um certo recato na abordagem de determinados temas. Reconheço que não perdi nada com isso e o melhor de tudo é que também não ganhei inimigos. O mundo das religiões (não o de Deus, entenda-se), dos galhardetes corrosivos da política ou da identidade de género, nunca me suscitaram lugares de fertilidade literária. Talvez porque sempre escrevi com o intuito de congregar e acolher e nunca de dividir. Admito que, por várias vezes, estive perto de ceder ao impulso de me submeter à vulgaridade do confronto de convicções, e foram muitas as ocasiões em que fiz um esforço hercúleo para me manter longe desse pântano. Enfim…

Esta crónica já foi outra coisa. Acontece que, nos primeiros dias de dezembro, fui submetido à maravilhosa experiência de contrair Gripe A. Uma bicheza de cepa rija com quem mantive uma relação estreita durante vários dias. Assumo que, das mulheres que amei ao longo da vida, nunca alguma me fez gratinar por dentro como ela.

No dia em que dei entrada no hospital, completamente amestrado por dores e febre, depois de feitas análises e de levar com broncodilatadores e outras merdas, meteram-me sozinho numa sala, longe do caos, como se me tivessem prescrito uma descida ao silêncio para começar a cura.

E foi aí que esta crónica mudou para aquilo que vai ser.

Não sei há quanto tempo eu ali estava. Sei que adormeci e, às páginas tantas, acordei com alguém a apertar-me a mão E a perguntar-me se eu estava bem. Estremunhado, com olhos a meia-haste, na minha frente uma senhora de esfregona na mão, cuja placa identificativa no bolso do uniforme azul revelava chamar-se Adelaide. Não me recordo bem o que lhe respondi, talvez um grunhido qualquer. Acontece que, pouco tempo depois, ela ressurgiu com uma trouxa de onde tirou um pacote de sumo (deu-se até à gentileza de lhe enfiar a palhinha) e umas bolachas de aveia.

Não sou médica, mas está com a cor a fugir da cara e precisa de comer!

E eu, meio taranta das ideias, a pensar no que seria ter a cor a fugir da cara, acedi à convicção de Adelaide e fui comendo as bolachas.

Depois de me vigiar durante alguns segundos, lá principiou a passar o chão com a esfregona. Adelaide era uma mulher bonita e todos os seus movimentos muito suaves, parecia ter mãos de maestrina a orientar uma orquestra. Começava todas as frases com «sabes…», como um pequeno sublinhado de quem se prepara para dizer coisa valiosa. E falou, falou… «sabes…» … e eu fui ouvindo.

A vida de Adelaide foi repleta de esperança, lugares e pessoas. Houve um tempo em que correu atrás de sonhos que nunca concretizou. Passou pela acidez da guerra, pelas tormentas de um pai violento e ainda de dois homens que lhe fizeram três filhos e devem ter morrido (depreende ela, porque os fulanos nunca mais apareceram). A determinada altura, os seus olhos solidificaram-se no vazio quando me confidenciou que, lá longe, na expetativa de chegar à outra margem do mar, fez coisas com o corpo para adquirir assento num barco enorme, embarcação que depois veio a adornar no meio da viagem por meter mais água do que gente. Estava grávida do terceiro filho nessa altura. Aguentou-se agarrada a um bocado de esferovite e acabou resgatada pela Guarda Civil espanhola. Foi para Algeciras e depois repatriada.

Adelaide chorou e teve medos maiores (curiosamente nunca de morrer) porém, dentro de si, no penhasco mais alto da sua fé, nunca desistiu de dar uma vida melhor e mais condigna aos seus meninos.

Numa inocência que me comoveu, Adelaide segredou que, de Marrocos para Portugal, existiam túneis gigantes, muito sofisticados, construídos no rés-do-chão do mar, por onde as pessoas com dinheiro (só com muito dinheiro), efetuavam a travessia sem serem notadas. Garantiu-me até, imagine-se, que, nesses túneis, era possível espreitar através de janelas redondas e muito bonitas, a felicidade dos golfinhos a nadar por entre as entranhas dos barcos afundados.

Depois de sucessivos enganos, foi na noite de 24 de dezembro de 2020 que, escondidos no fundo falso de um contentor atafulhado com tapetes e artigos de pele, ela e os seus meninos deixaram finalmente o continente africano. Após tantas tentativas fracassadas, aquela era apenas mais uma viagem sem certezas, da qual se recorda principalmente do escuro, do sussurrar do mar… e das lágrimas de fome dos seus meninos.

Começou por limpar o chão nos meus arredores e depois foi-se afastando, saindo aos poucos daquela sala, enquanto falava do que lhe apetecia. Eu apenas observava como quem desfruta de um lugar raro! Aquela mulher, imperatriz de esfregona, era uma lição de ir sem conhecer caminho, de continuar para além de toda a adversidade. Mulher que tinha tudo para ser precipício e, afinal, ainda me assinalou que era muito feliz e que os seus meninos já estavam na escola, que tinham roupa, amigos e dormiam de estômago aconchegado.

Com um sorriso, Adelaide expôs que ninguém lhe ligava muito! Como se o ofício de limpar e manter o brilho na vida dos outros lhe atribuísse a condição de ser uma mulher invisível. Deixa lá, Adelaide, não faz mal! – Não lhes dês importância.

Ao terminar a sua tarefa, espremeu a esfregona e, antes de se afastar, rebentou-me por dentro:

– Sabes… no rés-do-chão do mar também há flores!… São tantos os meninos que lá ficam a tentar chegar aqui.

E foi-se embora!

Depois de me darem alta, procurei por ela para lhe agradecer o sumo e as bolachas. Dirigi-me ao guiché e perguntei se sabiam onde estava uma senhora da limpeza chamada Adelaide.

Disseram-me que não trabalhava ali nenhuma Adelaide.

Deixa lá, Adelaide, não faz mal! – Não lhes dês importância.

Telmo Mendes

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