PUB

Já encarei a morte de diversas formas. Era capaz de jurar que já a senti demasiado perto de mim. Tão perto que o seu cheiro era assustadoramente encantador, com um poder hipnótico, quase sedutor. Ela nem precisava de provocar nada. Bastaria abrir a porta para o abismo. O resto seria comigo.

Mas a sua presença já não me assusta, porque finalmente percebi que morrer, independentemente do que isso possa significar, nem sempre é um evento final. Às vezes, é uma sucessão de despedidas silenciosas, partidas que ninguém vê e dores que tentamos camuflar. São aquilo a que costumo chamar de “funerais sem caixão”.

PUB

(Uau. A palavra caixão depositou neste momento um peso que não estava à espera.)

Ao longo da nossa vida, vamos morrendo um pouco de cada vez. E não falo da explicação óbvia de que estamos a envelhecer. Não. Falo de morrer um pouco sempre que um sonho se desfaz, sempre que alguém nos chama por um nome que já não nos serve, sempre que uma hipótese de amor que prometia florescer se transforma apenas num número guardado no telemóvel. Aquele número que já não temos coragem de apagar, mas que também nunca mais vamos ligar.

Morremos ainda mais quando entramos num quarto onde já fomos felizes e sentimos que a felicidade ali ficou presa numa versão antiga de nós. Ou quando olhamos ao espelho e percebemos que os nossos olhos já não brilham com a mesma intensidade, que há uma ruga nova e uma expressão de cansaço que antes se disfarçava com um simples sorriso e, talvez, um pouco de corretor de olheiras. Morremos com mais profundidade quando nos damos conta de que, afinal, não temos casa para voltar, porque a casa nunca foi um lugar, mas sim um tempo.

A vida é uma fábrica de abandonos. Vamos arrancando pedaços de nós pelo caminho como quem vai perdendo objetos sem notar. Uma camisola esquecida num quarto de hotel, uma carta nunca enviada, uma gargalhada que já não sabemos dar. Mas somos seres fantásticos e otimistas, porque, no início, tentamos os três famosos R’s: regressar, recuperar e remendar. Até que há um momento em que simplesmente seguimos sem olhar para trás.

E essa é a parte da vida de que ninguém fala: morrer dói, mas renascer? É uma mutilação lenta, um processo quase demoníaco de desapego forçado. Seremos sempre a soma de tudo o que já fomos e a subtração de tudo o que deixámos de ser.

E, talvez, a maturidade seja esta verdade irónica: aprender a enterrar-nos vezes sem conta e, ainda assim, ter coragem de acordar para mais um dia.

SANDRA MAY

Acompanha o trabalho da autora em:
https://www.instagram.com/saandramay/
https://www.facebook.com/saandramay/

PUB