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Revi na RTP recentemente o celebérrimo “12 Homens em Fúria”, realizado por Sidney Lumet e protagonizado por Henry Fonda. Já tudo foi dito sobre este filme que conta a história dos doze elementos do júri que, após o julgamento de um jovem de dezoito anos acusado de ter assassinado o pai, se recolhem a uma sala para tomar a decisão quanto ao veredicto; sabendo-se, que a ser considerado culpado, o que aguarda o rapaz é a pena de morte. Sendo um filme de 1957, impressiona a eco de sentidos que podemos trazer para a realidade de hoje.

Os jurados entram na sala animados, convencidos de que estarão despachados antes do jantar. O que vem mesmo a calhar, um deles até tem bilhetes para um jogo de basebol. Trata-se de um filme só com homens. As mulheres só se tornam juradas em igualdade de circunstâncias muito mais tarde, o mesmo sucedendo com as pessoas não brancas.

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A boa disposição no entanto não dura muito tempo, porque quando, pouco depois de entrarem na sala, se dispõem a confirmar que pensam todos o mesmo, ou seja que o rapaz é culpado de ter morto o pai, aliás culpadíssimo, surpreendem-se ao constatar que são onze os braços erguidos no ar, e não doze, como seriam precisos para a obtenção do veredicto de culpado. O que significa que há entre o grupo uma ovelha negra. Perdão, uma ovelha branca, afinal são todos senhores brancos. Melhor dito: há onze ovelhas brancas e um que não é ovelha, o que desgosta os outros jurados, que se insurgem perante as dúvidas que este arquitecto confessa possuir quanto à culpabilidade do acusado, em face dos factos apresentados em tribunal. Dúvidas que contrastam com as certezas dos restantes.

O que logo salta à vista é que as supostas certezas dos onze lhes vêm, quase a todos, não do ajuizamento das provas apresentadas ou das declarações prestadas pelas testemunhas de acusação, mas da avaliação preconceituosa que fazem do perfil específico do acusado, que não é nenhum senhor. O que esperar de um imigrante sem mãe que cresceu num bairro de lata? Inocência? Essa agora. Se fosse em Portugal, diriam alguns que o acusado não era nenhum “português de bem”, para merecer o benefício da dúvida. Para mais, o próprio advogado do jovem, designado pelo Estado, faz um mau trabalho de defesa, desinteressado do destino de um porto-riquenho indigente.

O ambiente é tenso, o dia está muito quente, e na sala, abafada e sem ventilação, o abrir das janelas não traz nenhum alívio aos homens, quase todos de camisas coladas à pele e testas reluzentes de suor. As provas são examinadas, inclusive o punhal que matou a vítima, analisando-se em detalhe os testemunhos. À volta da mesa, onde todos se sentam, esgrimem-se argumentos, e há medida que se vão sucedendo as recontagens, o braço erguido do arquitecto vai ganhando cada vez mais companhia. Até que resta um único homem obstinado na culpabilidade do acusado, por razões que se vem a perceber serem do foro pessoal e que se prendem com uma zanga que teve com o filho, o que o leva a dirigir o seu ressentimento aos rapazes em geral.

No fim, após muita tensão dramática, acaba por se concluir que é possível que o acusado seja inocente, sim senhor, e são doze os braços no ar, como se pensava de início que seriam, no entanto esta unanimidade verifica-se no sentido contrário, traduzindo a vitória da dúvida sobre a certeza. E na dúvida, não se condena.

Seja numa americana sala de jurados ou numa outra sala qualquer, seria bom que não se tivesse nunca pressa em condenar alguém só por não corresponder aos nossos padrões socioeconómicos ou culturais, ou porque temos os nossos próprios problemas e projectamos no outro os nossos rancores. Quantos homens em fúria cheios de certezas temos na abafada sala, cada vez mais aquecida pelo preconceito, que se tornou hoje Portugal? Temos o preconceito contra o imigrante, o cigano, o morador do bairro social, o negro, o castanho, o cor-de-rosa, o judeu, o árabe, o homossexual, o trans, a mulher…

E depois, ainda há quem anseie por reinstituir no nosso país a pena de morte e a prisão perpétua. Não sei se estão a ver o filme, mas com tanta fúria e preconceito, por este andar o que Portugal precisa é de uma grande sala de pânico, para abrigar os alvos de tanta fúria.

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