A Páscoa representa supostamente a morte e a ressurreição. Mas se reflectirmos, poderemos chegar à conclusão que a Páscoa, no fundo, traduz com muita frequência a nossa própria história de vida. Dizemos que Fulana conta catorze Primaveras, ou trinta, ou oitenta e dois, mas bem poderíamos trocar, sem despropósito – e letra p por letra p – o número de Primaveras pelo número de Páscoas.
A cruz simboliza a agonia do martírio e a vitória sobre a morte. E quantas mortes não nos é dado experimentar ao longo da vida? Quantas agonias? Talvez que esses grandes sofrimentos por que passamos, e a forma como persistimos, venham no fim dos nossos dias dizer da verdade que somos e o do que representou a nossa fugaz passagem pela Terra.
Ultimamente tenho pensado naquela adolescente que, em Loures, foi vítima de uma violação de grupo filmada e visualizada dezenas de milhares de vezes. Tenho ensaiado colocar-me na sua pele, fazendo por imaginar como ela se sente. É bem possível que se culpe, que diga a si mesma que deveria ter sido mais prudente. Até porque não faltam acusadores dedos cínicos apontados à sua jovem pessoa. Mas convenhamos, não procurámos muitos de nós, na nossa juventude, conhecer alguém que admirávamos, um ídolo ou uma referência, quer fossem artistas, músicos, intelectuais ou desportistas?
O facto é que nós criámos com as redes sociais um mundo em que os chamados influencers, seja lá isso o que for, se tornaram as grandes referências dos nossos jovens, pelo que não é nada insólito que uma adolescente procure chegar à fala e marcar um encontro com umas almas que depois se vêm a revelar os criminosos que já sabemos. Há vinte anos, numa altura em que era a televisão o meio de comunicação social mais massificado, eu poderia muito bem ter procurado conhecer, vamos imaginar, os membros do Gato Fedorento, por exemplo. Lembram-se deles? Do Ricardo Araújo Pereira e companhia? Imaginemos que os admirava muito, pelo humor irreverente, e que os contactava, que me declarava fã e com desejo de os conhecer, solicitando um encontro. Seria estranho? Não, pois não? Agora imaginemos que uma Evelina de dezasseis anos, com a ingenuidade própria da idade, ia ao encontro dos Gato Fedorento e que o Ricardo Araújo Pereira e os três comparsas me faziam o que foi feito à jovem em Loures. Seria eu culpada?
É certo que os Gato Fedorento não têm nada que ver com estes rapazolas, que vivem a querer impressionar sem ter com quê, coitados, e que apenas têm a morar entre as orelhas um grande, grande vazio. Só mesmo zeros à esquerda para quererem impressionar a maralha com o vídeo de uma violação.
Por acaso, eu, se tivesse de eleger um humorista para conhecer, escolheria o Herman José, que não contemporiza nem nunca contemporizou com uma mediania bajuladora que é bem o retrato, por cá, de uma certa sociedade. Sendo que nos dias que correm até o humor nos chega pré-digerido, para não termos de pensar muito. O Herman José do sketch inesquecível da Ultima Ceia, de que aposto que até Jesus no Céu se riu a bom rir. Porque humor e inteligência caminham frequentemente de mãos dadas.
Morte e ressurreição. Faço votos para que a rapariga violada em Loures possa tão cedo quanto possível transcender a agressão criminosa de que foi alvo. Não será certamente com a ajuda da justiça portuguesa, que nestas matérias alinha demasiadas vezes com os agressores, desvalorizando o corpo feminino tanto quanto o ser que nele habita. Felizmente, ela tinha pais a quem pôde recorrer, que a levaram ao hospital, que por sua vez alertou a PSP. Pergunto-me quantas outras meninas e mulheres não sofrerão a sua cruz em silêncio, carregando uma culpa e uma vergonha que apenas aos violadores cabe carregar.
Nesta Páscoa, e nas outras alturas todas do ano, pensemos em tirar o corpo da mulher portuguesa da cruz, onde tantos insistem em o querer colocar. Que tal?