Em casa ninguém me chama pelo nome. Para a avó sou o Minha Luz. Não sei se é lembrança ou imaginação, mas vejo-me deitado, bebé ainda, entusiasmado com os aviões coloridos do mobile pendurado ao alto, sobre o berço. De repente, por entre os aviões, vejo espantado aparecer a cabeça da avó, que se põe a fazer caretas e palhaçadas para prender a minha atenção. As mãos abertas, uma de cada lado da cabeça, junto às orelhas, a língua de fora. Acho que foi nesse dia que ela me chamou pela primeira vez de Minha Luz.
A avó vai buscar-me à escola e fica comigo até a mãe ou o pai chegarem. A mãe e o pai trabalham muito. Não compreendo porquê. Eu, se mandasse, escapava-me de fazer as cópias e as contas que a professora manda fazer e brincava todos os dias. Mas eles pelos vistos não pensam assim. Quando se deu o acidente há nove anos, e chegou a notícia de que a mãe tinha mesmo de parar de trabalhar por uns tempos, a avó diz que ela reagiu muito mal. Chorava de manhã à noite e não queria falar com ninguém. Abanava a cabeça e repetia que não podia ser verdade, que não podia ser. Estava em negação, acho que é assim que se chama quando alguém diz não a uma coisa que é sim. Nessa altura o pai, que como a avó diz gosta da mãe como o lago nocturno gosta da lua cheia, disse: Minha Abelha-Rainha, não te desesperes. Podemos ser felizes à mesma. Felizes de uma maneira diferente daquela que planeámos, mas felizes ainda assim. Mas a mãe chorava sem consolo e respondeu que não, que não era capaz.
Foi aí que a avó entrou em acção. Uma tarde teve uma conversa muito séria com a mãe. Filha da Minha Alma, pára lá de chorar, que não se consegue já aturar tanto pranto! Lembra-te que não tens dois braços, tens seis. És como aquela deusa hindu, Parvati. Parva? Não, eu disse Parvati, aquela que tem muitos braços. Tens os teus, os do teu marido e os meus. não te parece que são braços que cheguem para levar a vida para diante?
Aos poucos a mãe lá foi aceitando a fatalidade. No início foi difícil, porque ela olhava-se ao espelho e não se reconhecia na mulher que tinha agora aquelas olheiras fundas. A avó diz que o espelho só mostra aquilo que conseguimos ver, e que há muita coisa boa e grande que ele esconde para não ferir os nosso olhos habituados às sombras.
Depois um dia o choro parou, as linhas negras debaixo dos olhos desapareceram e ela acabou por estender os braços para o seu reflexo, abraçando a nova pessoa que ela era agora. Eu ainda não tinha nascido nessa época e para tentar compreender a tristeza da mãe quando se deu o acidente, desenhei no outro dia um retrato dela, em que com um marcador preto fiz riscos à volta dos olhos. Perguntei à avó se estava parecido, e a avó sorriu muito e respondeu que eu era um artista.
Hoje o pai chegou antes da mãe. Meu Favo de Mel, o que te apetece jantar? A avó entretanto foi embora, despediu-se de mim com um beliscão nas bochehas. Até amanhã, Minha Luz.
A mãe trabalha nos recursos humanos de uma grande empresa. Volta ao fim do dia, muitas vezes chega tarde, mas para compensar há dias em que ela trabalha a partir de casa. A mãe e o pai gostam muito dos seus trabalhos. E gostam muito um do outro. E de mim também. E da avó. São gostares diferentes que ocupam lugares diferentes dentro do coração. O coração parece que é uma casa grande e com muitos quartos, porque também lá mora o nosso gato Jeremias, e a tia Júlia, e o tio Alfredo, e os meus amigos todos da escola, e os amigos da mãe e do pai. E é engraçado como a cada quarto cada um dá o nome que lhe apetece. A mãe é a Filha da Minha Alma para a avó e a Minha Abelha-Rainha para o pai. O pai é o Meu Sol da Primavera para a mãe e o Meu Genro Tenro para avó. É engraçado termos assim tantos nomes.
Olhem, a mãe acaba de meter a chave à porta. Espero que venha com fome que o pai e eu fizemos lasanha. Ela vem direita à cozinha como um sabujo, guiada pelo cheiro que aposto que se sente nas escadas em todos os andares, a fazer crescer água na boca aos vizinhos. Deve vir cansada. Mas ao entrar na cozinha atira-nos um grande sorriso, a mostrar os dentes muito brancos. E abrindo os braços como um avião, diz para mim: Dá um abraço à mãe, Meu Acidente Lindo!