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Diamantina trabalhou em casa a vida toda. Criou dois filhos, um vive em Lisboa, o outro na Bélgica. Estão bem, graças a Deus, costuma responder num sorriso de orelha a orelha se alguém pergunta por eles. E se a seguir quiserem saber dos netos, então é vê-la cruzar as mãos à frente do peito e erguer os olhos para o céu. Estão grandes, a mais nova vai agora para a escola. Veja lá enquanto se passa o tempo!

Há muitos anos que é só ela e Fortunato, com quem está casada há cinquenta e quatro anos. Após a reforma, ele a instalar-se na sala como se fosse um monumento histórico, a parecer que todos os caminhos domésticos conduzem à imponência da sua pessoa. O marido granítico, quase impossível de mover, no meio da sala, a fazê-la circundar sempre o sofá, de forma a não cruzar a linha invisível que liga o olhar de Fortunato à televisão. No entanto, apesar dos olhos presos ao ecrã, ele atento ao cirandar da mulher pela casa, e a perguntar, ao senti-la passar atrás de si e a abrir a porta da varanda, ó Tina mas o que vais fazer para aí com o frio que está? Fecha mas é isso, anda! Vou lavar os vidros, então não viste que choveu ontem? Mas nesta altura é normal chover, será preciso andar sempre a lavar os vidros? Que paranóia, a tua, mulher! Parece mal, filho, os vidros assim todos manchados. Ele suspira, resignado.

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Mais tarde, grita Diamantina da cozinha para a sala, ó homem, queres caras de bacalhau ou morcela para o jantar? Ele escolhe as caras de bacalhau e ela revira os olhos, enquanto ata o avental atrás das costas, dizendo entre dentes, que nojo!

No dia seguinte, Fortunato leva Diamantina ao mercado. Ela preferia ir sozinha, mas ele diz que a mulher é um perigo na estrada, por isso vai também. Espera-a no carro enquanto ela faz os avios, lê o jornal desportivo, aberto sobre o volante. Ela regressa duas ou três vezes para largar sacos na bagageira. Vai à fruta, à hortaliça, aos enchidos e aos queijos. Sem esquecer o pão de centeio e a broa de milho. Ele não se oferece para a acompanhar e Diamantina até agradece, para não ter de o ouvir maldizer dos preços em todas as bancas.

Há muitos anos que não dormem enlaçados, não estão para essas coisas que a mocidade já lá vai. Para mais ela range os dentes durante o sono, por isso o marido diz-lhe que durma virada para o outro lado da cama, a encarar a parede, para ver se não ouve as castanholas que ela tem dentro da boca a tocar toda a noite. Ela não se importa, aliás deixa à noite meio metro entre o seu corpo e o dele. Até porque ele solta gazes a dormir. O que ela queria era uma daquelas camas de casal duplas, como viu num anúncio de uma revista que desfolhou na cabeleireira quando foi pintar as raízes, enquanto esperava de cabeça enfiada no secador. Uma cama de casal mas com dois colchões, para que durmam lado a lado mas sem se estorvarem.

Uma manhã Fortunato não acorda. Durante o sono a morte vem em surdina e Diamantina não dá conta. Desperta sempre mais cedo que ele, porque a sua bexiga não a deixa molengar. Levantou-se de fininho, como de costume, para o deixar dormir mais um pedaço. Já tinha bebido o café com leite e comido a torrada com doce, e deitava uma pinga de água nas flores do terraço quando deu conta que ele já se devia ter levantado.

Agora Diamantina não lava os vidros há muitos meses. Tem a sala desimpedida, pode passar para frente e para trás diante da televisão as vezes que quiser, sem risco de admoestações, todavia acha-a tão vazia e silenciosa, sem o seu monumento plantado no meio, que o coração aperta-se-lhe no peito ao encarar o sofá deserto. Os dias tornam-se compridos, as horas extravasam, longas e monótonas, e ela pergunta-se porque foi que os dias passaram a ter tantas horas. Embora agora possa escolher o que lhe apetece comer, nunca tem apetite. E apesar de dormir no meio da cama, à vontade e sem os peidos do marido, acorda sempre triste. O aspirador vegeta sobre a carpete da sala há três dias. A meio da limpeza, deu-se conta que já não valia a pena limpar. O pó que se acumule sobre os móveis e o cotão pelo chão. Não quer saber. Desistira há meses de lavar os vidros e deixara mesmo de regar as flores do terraço, que acabaram por morrer de sede. Não tem razões para viver. Não sabe se é saudade ou que coisa seja. O diabo do homem, que só sabia arreliá-la, faz-lhe tanta falta.

Um dia entra na biblioteca. Olhe lá, menina, arranje-me alguma coisa para ler. Que tipo de livro gosta? Não sei, nunca fui muito de leituras, mas preciso ocupar as ideias. Acaba por sair da biblioteca com um livro de memórias de um capitão de Abril. Sabe, o meu marido esteve em Angola, lembro-me de o ouvir falar muito desses anos. Volta dias depois. Em casa, o aspirador continua abandonado no chão da sala. Leva dessa vez uma biografia. Na semana que se segue sai da biblioteca com “O primo Basílio” debaixo do braço. Depois escolhe uma história breve da Rússia. Ouça cá, menina, ouvi falar do Dosto… Dostov… Refere-se ao Dostoiévski? É isso, é, mostre-me o que tem dele.

Pensa às vezes Diamantina que é o prazer que torna os dias vivíveis, esteja ele na companhia de uma pessoa, no interior de um livro ou noutro lado qualquer. Em sua casa, o aspirador está agora arrumado. Sai da dispensa à sexta-feira, dá a volta à casa e volta logo depois para o mesmo sítio. Os vidros das janelas são lavados uma vez por semana quando chove, ou uma vez a cada quinze dias no Verão. Comprou flores novas para os vasos no terraço, a que nunca falta com água. Uma vez por outra faz para o almoço caras de bacalhau, de que continua a não gostar, só para recordar o mau gosto alimentar do marido. Fica-se a olhar para as caras no prato como se estivesse a olhar para a cara de Fortunato, a recordar este ou aquele episódio, com o cheiro a empestar a cozinha. A seguir levanta-se, suspirando, deita as caras de bacalhau no balde do lixo, debaixo da pia, e vai apanhar a roupa que deixou na corda, que pelas suas contas já deve estar seca.

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