PUB

Há dias morreu, com doze anos, o meu gato. Pelo que agora me sinto meio perdida em casa, sempre a olhar para os cantos, à espera de o ver aparecer. Ganhei entretanto a mania ridícula de imaginar que abro os braços, feito um cristo, e que ele surge de algum lado a correr e me salta para o colo, cheio de saudades.

Noto que passei a contar o meu tempo de vida pelos gatos que vou tendo. Estou agora no meu terceiro, e talvez a vida tenha para me oferecer ainda mais dois ou três amigos peludos. O Isaac chegou após a morte do Óscar. Nessa altura eu chorava todos os dias, logo na cama, antes mesmo de abrir os olhos. Uma semana disto, e no trabalho uma colega sentenciou: olha, o que tu precisas é de outro gato. Respondi que não, que não queria nada outro gato, ela que tivesse juízo. Ora acontece que outra colega tinha justamente, nessa altura, em casa uma gata que tinha parido três gatitos e, tendo já dono para dois, procurava quem acolhesse o terceiro. Calculo que os meus olhos inchados a tenham feito pensar que eu seria uma boa candidata, assim sensível e dolorida. No entanto eu não estava interessada noutro gato, queria era o Óscar de volta. A colega, então, persistente, passou a mostrar-me fotografias do gato que tinha para dar, todos os dias, a ver se me fazia a cabeça. E eu, muito torta, dizia-lhe que o gato era feio (não era!) e que não o queria. Mas água mole em pedra dura. Um dia, cansada de chorar, capitulei: bolas, traz lá o raio gato!

PUB

E assim chegou o Isaac, com um mês de vida, para secar as minhas lágrimas. Um gato sinalizado como “agressivo”, logo quando o levei para as primeiras vacinas e constatou-se serem necessárias três pessoas para segurar um gatinho do tamanho de uma mão. Fiquei estarrecida, e, levando as mãos à cabeça, perguntei-me que espécie de animal selvagem tinha eu posto em casa. E com crianças pequenas, veja-se bem o perigo. Chamei vários nomes feios à colega, que decerto sentiu, apesar da distância, o ardor do meu rancor a dar-lhe nessa hora irada com força nas orelhas. Enquanto se esforçavam para imobilizar o Isaac, com luvas de couro metidas até às axilas, eu, da porta do consultório, um pé dentro e outro fora, ponderei raspar-me e abandonar ali a pequena fera. Eles que lhe arranjassem outro dono!

Acabei por não o fazer, e ainda bem. Fera, só no veterinário, onde passou a ir só depois de eu lhe fazer engolir um calmante e de funil posto no pescoço, para não ferrar a dentuça em ninguém, embora o pessoal da clínica, com o tempo, tenha aprendido a conhecê-lo de ginjeira. Ainda assim, um circo a cada consulta, com os seus uivos ameaçadores a fazerem-se ouvir no meio da rua. Em casa, pelo contrário, era um doce. Ensinei-o a fazer chichi no bidé (não sei porquê!), e para fazer o resto ele pedia, muito civilizado, para ir à varanda, onde estava a caixa de areia. Eu, nesses anos, andava a criar os meus filhos, e acabei por sujeitar o gato ao mesmo ímpeto educativo. Descobri que ele era muitíssimo inteligente, eu ensinava e ele aprendia. Aos seis anos descobriu-se que sofria de tríade felina, o que o tornou mais esquivo e rabugento. Nos últimos anos fui sua enfermeira, dando-lhe a medicação e limpando vomitado todos os dias.

Há dois anos trouxe para casa o Matias, e como já tenho os filhos criados e já não estou para disciplinar ninguém, não lhe ensinei rigorosamente nada. Mentira. Ensino-lhe todos os dias que gosto dele às mãos cheias e que ele é uma criatura imensamente querida e que o universo quer-lhe muito bem. É que aprendi com os anos que o sentido da vida, no fim de contas, são os afagos e os abraços, que valem na contabilidade dos dias bem mais do que qualquer educação ou filosofia. É, portanto, uma escandaleira de gato, mal-educado, sem maneiras nenhumas, que só quer saber de estar em cima e mim a lamber-me os braços e o pescoço.

Com a chegada do Matias, o Isaac começou a fazer o que precisava à hora que lhe apetecia, na caixa de areia que passou a estar sempre à disposição. Ainda assim, ele gostava de ir pingar ao bidé de vez em quando, porque assim foi habituado e somos todos, homens e gatos, animais de hábitos. Mas desconfio que ele também gostava de se exibir diante do Matias, porque afinal, homens ou gatos, somos todos uns gabarolas.

Ainda bem que eu acredito que voltaremos um dia a encontrar todos os amados que perdemos. Homens e gatos.

Ainda bem.

PUB