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O meu amigo Filipe começou a colaborar com a Associação há três anos, pouco depois de a Raquel lhe partir o coração. Há dores tão profundas que são uma rosa de sangue a desabrochar no peito. Os homens assim, nesta condição, por onde quer que andem, apresentam-se sempre endomingados, de flor na lapela. O grande desgosto no fundo a ser uma espécie de sofisticação com que se veste o coração para frequentar a festa da vida. É mais desconfortável do que a vestimenta casual, lá isso é, mas diferencia aquele que assim se apresenta. Quem sofre uma dor de alma torna-se distinto, ganha densidade; ascende a um patamar que não está reservado a todos. A alma do homem, que em segredo se oculta sob as vestes, a parecer-se com o ferro na forja, no qual há que malhar com força para dar a forma certa. O ferreiro fabrica instrumentos, e estes, para cumprirem o seu propósito, têm de ser bem forjados. E sem fornalha e sem bigorna, nada feito. A fornalha para o Filipe foi a paixão incendiária pela Raquel e a bigorna o facto de ela ter-lhe dado com os pés, e logo para ficar com o Zé Miguel, seu primo e melhor amigo.

Nos primeiros tempos, logo ao despertar, as lágrimas afloravam aos olhos do meu amigo antes mesmo de ele os abrir, ao recordar-se, na cama ainda, do rosto dela. E à noite, só depois de ter regado o travesseiro com um choro fundo e silencioso é que adormecia, já de madrugada. De manhã à noite, trazia o Filipe o peito em carne viva.

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Até que um dia viu um anúncio a pedir voluntários, e sem saber porquê escutou um clique qualquer, muito discreto, a dar sinal dentro de si. Contactou a Associação e ofereceu-se para colaborar. Eles agradeceram, toda a ajuda é bem-vinda, disseram-lhe. A partir de então, duas noites por semana, quem quiser encontrar o Filipe em Lisboa é ir ao Campo das Cebolas, onde topam com ele a distribuir sopa pelos mais desventurados. De início a miséria chocou-o. Aquele cortejo de maltrapilhos, famélicos e malcheirosos causou-lhe arrepios. Mas à noite, ao deitar a cabeça no travesseiro, tinha a mente tão povoada de semblantes desoladores, que Raquel sentia agora dificuldades para se imiscuir por entre os rostos que passaram a frequentar o pensamento de Filipe. Ela tão loura e luminosa, com os seus perfeitos dentes brancos, fugia de se misturar com aquela trupe de enjeitados encardidos, e há medida que o tempo foi passando as suas aparições no pensar de Filipe foram-se espaçando cada vez mais.

Como a mancha difusa que vai ganhado contornos precisos na justa medida em que o nosso olhar se aproxima, Filipe foi conhecendo as histórias de vida por trás de cada rosto na fila diante da carrinha da Associação. De uma visão de grupo, Filipe passou a descortinar indivíduos. A Mariana caiu na rua por causa do alcoolismo, o Jacinto ficou desempregado e deixou de poder pagar a renda, o Mário foi expulso de casa quando a família descobriu que era homossexual, à Kiara deitaram-lhe abaixo a barraca com um buldózer… Cada rosto, uma história.

Com isto o Filipe pensa agora cada vez menos na Raquel. E em certas alturas os traços exactos do seu rosto de serafim esfumam-se quase completamente. A parecer que se passaram muitos anos. No último Natal encontrou o Zé Miguel em casa da tia e surpreendeu-se a estender-lhe a mão, como se não fosse ele seu inimigo jurado. A vida continua, ouviu a tia, aliviada, segredar ao tio.

Na semana passada a fila para a sopa no Campo das Cebolas teve uma novidade. Com surpresa, dentre os fregueses do costume, Filipe reparou num casal muito bem-posto, com uma elegância que fazia vivo contraste com os restantes membros da fila. Ele vestia calças de ganga, camisa às riscas e blusão de camurça, e ela saia preta e uma parka quentinha. O meu amigo quis conhecer a história deles, pois não tinham ar de sem-abrigo. Descobriu que efectivamente não viviam na rua. Pelo menos por enquanto. Tinham emprego e casa, mas haviam sido excepcionalmente aceites a nível temporário no programa de distribuição alimentar, porque desde a subida das taxas de juro e com a inflação o ordenado de ambos dava-lhes apenas para pagar o empréstimo ao banco, não chegando para prover à alimentação. No fundo estavam a ser ajudados para evitar que amanhã estivessem na mesma situação que os restantes, ou seja na condição de sem-tecto. Quem vê caras realmente não vê corações. Passando por este casal na rua, ninguém imagina que duas vezes por semana eles se apresentam na fila da sopa. E no entanto…

Apesar de parecerem diferentes, diante da carrinha da Associação, todos se assemelham de alguma maneira. Assemelham-se ao Filipe também. Apresentam-se todos adornados com uma rosa de sangue ao peito. O que será que irão fazer com ela?

Evelina Gaspar

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