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Teria talvez quinze anos quando a minha professora de português decidiu organizar na sala de aula uma série de debates entre os alunos. A ideia era praticar a argumentação e a oralidade. A mim coube-me debater a tourada, e a professora indicou-me para a defender. Levantei-me logo da cadeira para protestar. A professora desculpe, mas eu sou contra a tourada! Ela limitou-se a encolher os ombros, dizendo paciência!

Dois dias depois, digerida a contrariedade, resignei-me a abraçar, para efeitos de discussão académica, a causa da tauromaquia. E ainda bem, porque descobri de imediato que era bem simples defender essa “grande tradição portuguesa”. Bastou-me para tal esgrimir, com uma convicção bem fingida, os argumentos tradicionais do “património cultural” e da “liberdade de gosto”, que são os que continuam ainda hoje a ser usados para advogar a causa da festa brava. Embora actualmente se invoque também, e com muita graça, o argumento de que a tourada previne a extinção do touro bravo e de que, no fim de contas, as ganadarias o que fazem é prestar um serviço em termos de conservação e protecção das espécies. Francamente, eu, se tivesse escolha, parece-me que preferiria extinguir-me a viver para ser torturada.

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O meu pai gostava muito de corridas de touros e eu cheguei a assistir a várias, em família. Não estranho, pois, que muitas famílias portuguesas o façam. Mas julgo que existem outras actividades em família mais recomendáveis, e que não passam pelo suplício de nenhum animal. Não sei ao certo que idade teria, mas uma noite acordei aos gritos na cama, porque sonhei que fora colhida por um touro, que corria pela arena comigo entre os cornos, enquanto eu me esvaía em sangue perante um público que aplaudia. Foi justamente o meu pai que acorreu ao meu quarto para me acordar do pesadelo, deixando a luz acesa ao regressar para a sua cama, depois de eu me acalmar. Já houve um tempo em que em Portugal as famílias assistiam ludicamente aos autos de fé. As coisas mudam. E ainda bem.

Enquanto em países como no México e na Colômbia estão em marcha deliberações para a suspensão das touradas, por cá, apesar de o número de touradas realizadas no nosso país continuar a descer de ano para ano, o governo promove a sua continuação, decidindo pela descida do IVA nos bilhetes de entrada nas praças de touros.

Na cidade do México, que conta com a maior praça de touros do mundo, com capacidade para mais de 41.000 pessoas, e onde a tourada é particularmente violenta, as corridas podem estar para acabar, com o apoio de Paul McCartney, que tem dado a cara numa campanha contra as touradas. Declarou o ex-Beatle:

Nas touradas, agressores a cavalo fincam lanças nas costas e pescoço do touro, antes de outros espetarem bandarilhas nas suas costas. Quando o touro perde sangue e fica fraco, um matador tenta matá-lo cravando uma espada nos seus pulmões. Uma faca é usada para cortar sua medula espinhal. O touro pode ficar paralisado mas ainda consciente enquanto as suas orelhas ou a sua cauda são cortadas e apresentadas ao matador como um troféu. O seu corpo é arrastado para fora da arena.”

Pelo que me lembro, venci na escola o debate sobre a tourada, o que não foi uma surpresa, pois naquele tempo defender os direitos dos animais era talvez ser moderninho demais. Já hoje, penso que seria mais difícil para um aluno defender a causa da tauromaquia num debate escolar, uma vez que nos dias que correm já não é considerado vanguardismo defender o fim da tortura animal para fins recreativos. Mas para o nosso governo, pelos vistos é coisa de incentivar.

Há uns meses passei, ao volante do meu automóvel, por uma cidade aqui do Ribatejo em noite de tourada. Ao deter-me num semáforo, observei as pessoas no passeio dirigindo-se, festivas, para a praça de touros. A dado momento um aficionado gritou viva o toureiro! O seu entusiasmo foi logo secundado por muitos outros que seguiam pela rua com o mesmo destino, viva! viva! E eu, com a rua congestionada de entusiastas da tourada, numa cidade conhecida pela sua tradição tauromáquica, cedi a um impulso ridículo de tão infantil, e, pondo a cabeça fora da janela do carro, gritei a plenos pulmões viva o touro! abaixo o toureiro!

Felizmente, nesse instante, e antes que as pessoas pudessem reagir, o semáforo ficou verde e eu raspei-me dali, carregando fundo no acelerador.

Evelina Gaspar

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