Rui Madeira
rui.madeira@entroncamentoonline.pt

 

Órbita Russa

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À força braçal de martelo e picareta, o Muro de Berlim desabou em 1989, seguindo-se a surpreendente implosão – no início dos anos 90 – da imperial União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), feita em papas num nada. Estes acontecimentos desencadearam uma bombástica reação em cadeia, causando irreparáveis fissuras na Cortina de Ferro.

A cisão levou à independência das 14 nações da ex-URSS, incluindo a Ucrânia, o segundo maior país europeu – em termos territoriais – depois da Rússia. A consequente ebulição tornou-se escaldante e derreteu a glacial Guerra Fria. Num ápice, o Pacto de Varsóvia evaporou-se no éter e, desde então, não deixou saudades. Depressa a foice e o martelo foram descartados para as prateleiras do vão da História.

Mas nem tudo foi mau. Afrouxaram as tensões entre os países de leste, com orientação comunista, na órbita da Rússia e os países ocidentais, de matriz capitalista, com centro de gravidade europeu e americano.

Entretanto, o espaço deixado vago, pelos ondulantes véus vermelhos, que abdicaram de dar bandeira, foi preenchido pelos atores da nova era da Globalização, com americanos e chineses à cabeça, foçando à fossanga por influência neste insólito calhau esférico, que indiferente à espuma dos dias teima em rodopiar, numa roda-viva, à volta do Sol.

 

China muda a agulha e embarca no neocomunismo

Também a China deitou borda fora o Grande Salto em Frente e tentou envergonhada disfarçar a Revolução Cultural de má memória. “Enterrou” à lei da bala e, literalmente, a tiro de canhão, os seus violentos guardas vermelhos. Eram irredutíveis defensores da cartilha Maoista – conhecida por Livro Vermelho – onde Mao deu à estampa o patoá da sua cosmovisão política. Curiosamente, tão do agrado de alguma juventude europeia, dos idos de 68. Mesmo em Portugal e, à data, até com ramificações na nossa cidade, através da célula do MRPP, com tentacular influência Maoísta.

Como consequência até a China mudou a agulha. Finalmente, deu o definitivo salto em frente, sem complexos e na direção do socialismo de mercado – o neocomunismo, a sua nova bitola de referência – por onde surfa a ocidentalizada atração pelo fetiche das mercadorias. Adaptou-se aos tempos e evitou uma reedição das grandes fomes chinesas, permitindo à generalidade da sua população viver com o mínimo de dignidade.

Banzé de lés a lés e o escaqueirado carrinho de legumes de Bouazizi

Na ausência da influência dos antigos atores imperialistas e à boleia de anteriores revoluções, muitos povos do Mundo apanharam a maré da autodeterminação, com as pessoas a tomarem a rédea dos acontecimentos nas suas vidas.

Algumas ondas de choque foram involuntariamente originadas pelo desconhecido e ocasional Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisiano. Ganhava o seu sustento nas ruas, comercializando, porta-a-porta, frutas e legumes transportados num escaqueirado carrinho.

Era um simples peão no xadrez da História, mas as caprichosas manigâncias do destino cismaram sofisticados planos ocultos, decidindo atribuir-lhe o papel de mártir, em toda a amplitude do palco do mundo.

A 16 de dezembro de 2010 a polícia confiscou-lhe o carrinho, os produtos e uma balança eletrónica. Invocaram falta de licença, para a sua atividade de vendedor. Segundo consta, adicionalmente esbofetearam-no publicamente e cuspiram-lhe na cara, de modo humilhante.

Inconformado foi procurar um funcionário público local, para reclamar e solicitar a devolução dos seus pertences. Mas não foi atendido. Frustrado regou-se com gasolina e ateou labaredas de fogo a si próprio. Enquanto se imolava pelas chamas gritava de forma excruciante: – Como esperam que ganhe a vida?

Este dramático desfecho desencadeou tumultuosas algazarras nos países vizinhos e lançou incendiárias línguas de fogo pelo mundo árabe, ficando registado nos canhenhos da História como a Primavera Árabe. Um mês após o incidente o sistema político da Tunísia implodiu, devido à grande agitação social no país e ao generalizado banzé instalado de lés a lés.

Rastilho de ressentimento pelo vício da ganância e da carne para canhão

Bouazizi não era um adversário político do regime, não era um implacável preso político, agrilhoado no degredo de uma fétida prisão, esquecida nos confins das desérticas areias das arábias. Nem sequer era um ativista de causas, em manifesta e anárquica ação de protesto. Era apenas uma pessoa simples a tentar sobreviver, provavelmente à custa de expedientes pouco ortodoxos, mas à imagem de milhões de outras pessoas nas sociedades árabes.

O seu ato desesperado foi sentido como algo simbólico e representativo do sentimento de injustiça dos regimes onde viviam e trabalhavam muitos árabes. Estas pessoas manifestaram-se contra governos autoritários, políticos corruptos e magnatas cleptocráticos, todos eles viciados em ganância e prontos para utilizarem os seus povos à laia de servidão económica, como indiferenciada carne para canhão.

Depois da Tunísia seguiram-se tumultuosos protestos no Egito, na Líbia, no Iémen, no Bahrain e na Síria. As pessoas assumiram as críticas aos seus regimes autoritários, contra o ressentimento, a humilhação, o desrespeito e a falta de dignidade dos seus governantes.

Batata quente rebenta na Ucrânia, mesmo às portas de Moscovo

Em 2013 também a população ucraniana se revoltou, através do movimento de resistência conhecido pela Revolução da Dignidade. Aconteceu quando o então presidente Viktor Yanukovych desistiu da candidatura da Ucrânia, para entrar na União Europeia (EU).

Como alternativa propôs um entendimento com a Federação Russa e com a União Económica e Euroasiática, sob uma bênção cozinhada com Vladimir Putin.

Esta marcha-atrás, entendida como um indesejado retrocesso e um inadequado regresso à esfera de influência da Grande Mãe Russa, do período soviético, desencadeou vários protestos na Praça Maidan, situada em Kiev.

As manifestações de simpatia pela opção da EU, levadas a cabo pelo movimento Euromaidan, foram violentamente reprimidas e resultaram na morte de uma centena de manifestantes.

Estes infelizes acontecimentos aumentaram o desagrado das pessoas e a batata quente rebentou nas mãos do presidente Yanukovych, mesmo às portas de Moscovo. Com o aumento da adesão ao movimento Euromaidan, o presidente deixou de conseguir controlar a situação e abandonou o poder, permitindo aos ucranianos escolher livremente o seu destino. Até hoje.

Pomba branca, pomba branca…

Falhadas todas as tentativas, para instalar um governo fantoche na Ucrânia -manipulado a belo prazer por um núcleo duro de cleptocratas – a “inteligência” russa decidiu avançar para a solução final da invasão, através de uma eufemística “operação militar especial”, cuja tradução para bom português – deixemo-nos de tretas – significa guerra imperialista.

Putin – aparentemente apanhado do clima – perdeu a vergonha e a cintilante capa de verniz, da fantasiosa democracia russa, estalou e foi substituída pelo brilho fosco da predatória pandilha mafiosa que capturou o estado russo, sob a despótica liderança de um manhoso figurão que não vale uma ventosidade pelo ânus.

À pala de cândidas largadas de pombas brancas e de um enviesado discurso de paz, apelando à segurança e à unidade do povo russo com o povo ucraniano – na alçada da Mãe Rússia – iniciou-se unilateralmente um conflito fortemente armado, em nome da paz, numa atitude paradoxalmente contraditória e de cínica hipocrisia.

Com botas militares no terreno a expetativa agora é perceber como vai o Mundo descalçar esta bota, numa guerra fratricida, onde o fantasma nuclear está bem visível e em prontidão, para descer à terra e semear os seus nefastos cogumelos atómicos.

Desta vez, a simbólica pomba branca da paz não bateu asa pelos céus da Ucrânia, com o ramo de oliveira no bico, anunciando as boas-novas. O que tem voado pelos céus da Ucrânia é muito diferente e tragicamente vai trazer muito mais do que “água no bico”.

Comer a cauda

Depois do desastre comunista a Rússia volta-se agora para dentro da sua antiga esfera de influência e começa a comer a própria cauda, num processo de autofagia ou autocanibalismo de insaciável apetite destrutivo e de dimensão geográfica, social, económica e política imprevisível, capaz de desencadear um Armagedão de dimensões bíblicas.

A basófia da “blitzkrieg”, ou da guerra relâmpago, transformou-se numa guerra a passo de caracol, dirigida cobardemente contra uma população pacífica, mas resistente e corajosa, apesar do céu estar a cair-lhes em cima, como se fosse o fim dos tempos. Mas quem está hoje disposto a viver subjugado por uns quantos elementos da nova elite czarista, como quem quer, pode e manda?

Pelo que temos visto os russos estão dispostos a distribuir muita “fruta” a quem lhes fizer frente e por isso a Ucrânia também terá os seus muitos Bouazizis. Num contexto e numa época completamente diferentes, alguns ucranianos voltam a estar perante uma escolha bastas vezes conhecida do destino dos povos: pátria ou morte.

O seu exemplo de sacrifício serve para mostrar que a dignidade ainda conta para muitas pessoas e não é uma palavra vã.

 

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