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Foi lançado há dias o livro biográfico de Camões «Fortuna, Caso, Tempo e Sorte» como sendo «a mais completa e rigorosa abordagem à vida do poeta». A autora, Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras do Porto, é também professora universitária e escritora finalista dos Prémios Leya e Oceanos. Dedicou cinco anos a esta pesquisa segundo divulgada pela imprensa. Há pelo menos seis meses que o Instituto Camões e a imprensa andavam a promover esta edição. A expectativa dera enorme ou.. nem por isso…

Numa entrevista que tive a oportunidade de ler recentemente a autora, reportando-se à questão de Camões em Constância, refere-se ao célebre «Banquete das trovas» de Goa que o poeta terá dirigido a um grupo de amigos ligado à antiga Punhete. A autora conclui que esta informação estava dispersa e que a coligiu de forma a se poder melhor tirar agora conclusões: da forte ligação a Punhete dos convivas de Camões. Fica a impressão de que traz algo de novo e importante. Será?

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Bom! Como eu sabia que a informação em causa não só não estava dispersa e era caso investigado seriamente pela Associação da Casa-Memória de Camões, fiquei algo desconfiado com estas afirmações de Isabel Novo. A segunda reserva deve-se ao facto de aparecer a própria autora a tirar conclusões sobre a sua investigação, quanto ao mérito das conclusões. Fui ler o livro e, em particular, os capítulos relacionados com Constância (10 e 23). Rapidamente concluí que se apoiou fortemente no trabalho da antiga Conservadora do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, conquanto a cite timidamente e de forma equívoca numa notinha remetida para o final do livro. Nessa nota reconhece-lhe o mérito de ter compilado informação biográfica. E nós sabemos que ela fez muito mais do que isso. A Doutora Maria Clara é autora, sim, de uma tese inédita sobre Camões e Belisa, de uma investigação inédita, crítica, sobre Camões. Não é uma compiladora de circunstância…

Passo a citar uma passagem de Isabel Novo, a qual a meu ver, não respeita involuntariamente os créditos devidos à Doutora Maria Clara Pereira da Costa e à Casa-Memória de Camões em Constância. Lapso, erro, falta de atenção? Não vou comentar. Lê-se assim na página 617 do livro de Isabel Novo agora publicado:

«(…) mais recentemente Márcia Arruda Franco demonstrou que o célebre Banquete das trovas que Camões organizou em Goa teve como convidados um grupo de amigos, todos eles ligados a Punhete, fornecendo mais um argumento a favor da população».

A conclusão é óbvia: «Márcia (…) demonstrou que».

O que escreveu efectivamente Márcia Arruda, a qual já citei numa das minhas crónicas?

«As trovas-iguarias do banquete indiano de Camões, que remetem à fome quotidiana do poeta e de seus amigos, já tiveram os seus destinatários identificados historicamente, por Maria Clara Pereira da Costa (1989):

«D. Vasco de Ataíde, irmão do vice-rei D. Luís de Ataíde[,]é o primeiro convidado para o banquete […], sobrinho[,] por [meio do] casamento de sua tia D. Isabel de Ataíde com Simão Gonçalves da Câmara […], senhores de Punhete[, a que se liga] por afinidade[;] os outros convidados do banquete de Goa são todos netos de D. Guiomar Freire, […], filhos segundos da velha nobreza, […], como D. Francisco de Melo (Sampaio) […], filhos também segundos e terceiros, […] da nobreza mais recente, […], refrescada com sangue de mercadores e cristãos novos[,] como João Lopes Leitão e Heitor da Silveira.[Por fim,] D. Francisco de Almeida […], sangue dos maiores heróis guerreiros que o Poeta cantou. (Costa 1989: 359-365).

Os convivas pertencem ou ligam-se à região do palácio de Constança Pires de Camões. Tal circunstância reforça a ideia de o banquete de trovas representar uma sociabilidade masculina de corte, a incluir uma burguesia enobrecida, viajada da Europa até a Goa» (1)

Quer-se dizer: quem fez a identificação histórica dos amigos de Camões foi o Doutora Maria Clara Costa e não Márcia Arruda. E nós sabemos que quem provou a forte ligação desses convivas a Punhete e a Camões, foi a mesma investigadora Maria Clara e não Márcia Arruda. Nem Isabel Novo sequer. O autor da presente crónica conhece os argumentos de Maria Clara Costa desde muito cedo. Já em 1986, numa edição impulsionada pela fundadora da associação (a jornalista e escritora, Manuela de Azevedo) a investigadora Maria Clara Costa, concluía (2):

«Poderemos então dizer que a quinta e derradeira trova posta por Camões aos seus convivas no «Banquete das trovas», que ofereceu em Goa, é dirigida a mais um neto de D. Guiomar, já que D. Francisco de Almeida, Heitor da Silveira, e João Lopes Leitão eram todo seus netos. De facto Camões vive de perto e foi amigo dos senhores de Punhete».

Mas, atente-se, em 1981, a Doutora Maria Clara já teria escrito sobre a matéria, desenvolvendo a investigação publicada em 1977:

«Basta lembrar o célebre banquete das trovas que este ofereceu em Goa e para o qual convidou apenas quatro fidalgos, D. Vasco de Ataíde e os referidos netos de D. Guiomar» (3).

Não vou aqui repescar as peças que publiquei na imprensa sobre o banquete das trovas e respectiva investigação da associação. Recordo apenas a representação que foi feita do mesmo no refeitório quinhentista de Constância, para o então Presidente da República, Mário Soares, em 21 de Abril de 1990, ocasião em que foi editada uma brochura/convite com o resumo dessa investigação.

Reparei que Isabel Novo entre várias afirmações espantosas, se refere a um foral dado a Punhete por Dom Manuel I. A sério? É que a nota bibliográfica que cita nada contém

que fundamente essa afirmação. Antes pelo contrário. E qual então a origem do foral de Constância?

Num documento da Chancelaria de D. João I tem-se notícia da atenção da Dinastia de Avis dispensada a Punhete, então Lugar. Veríssimo Serrão dá-nos a conhecer uma carta do monarca, dada a 23 de Agosto de 1390 a Afonso Pires, Juiz em Abrantes: «…Sabede que os homes boons e poboradores de punhett nos enviaron dizer antigamente que a memoria dos homes non era em contrario per seus privilégios e seu foral que lhes foi dado… pelos rex os que antes nos foram E outrosy per nos atee o tempo dora ouveram seus juízes e jurdiçam no dicto loguo de todollos feitos crimes…». Dom Manuel I ???

A carta régia de elevação a vila e concelho, dada por Dom Sebastião em 30 de Maio de 1571, também nada tem a ver com Dom Manuel I.

O livro de Isabel Novo até agora ainda não conseguiu surpreender-me. Cinco de anos de investigação? Não é nada. É poucochinho. Peço desculpa.

José Luz (ex-presidente do Conselho Fiscal da Casa-Memória de Camões.

Bibliografia em geral desta crónica.

(1)Arruda Franco, Márcia (2014), « Convite que fez Camões em Goa a certos Fidalgos», elyra, Revista Da Rede Internacional Lyracompoetics, 4, 10/2014: 21-45–ISSN 2182-8954

(2)«Novas Obras de Arte Quinhentista do Tempo de Camões» (1986), Associação Para a Reconstrução e Instalação da Casa-Memória de Camões em Constância e Círculo de Leitores com o Apoio da Direcção-Geral de Comunicação Social.

(3)Estudos sobre Camões: páginas do Diário de notícias dedicadas ao poeta no 4o. centenário da sua morte,Temas portugueses, Impr. Nacional-Casa da Moeda, 1981, ISSN 1647-4813

(4)Costa, Maria Clara Pereira da Costa (1989), “A problemática da inserção social de Luís de Camões. Os Camões na Índia no século XVI e alguns amigos do Poeta”,Lisboa, Studia, n.º 48:353-368.

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