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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Há já bastantes anos, tantos que eu passava ainda pela fase tardia da minha adolescência, que foi, confesso-o com franqueza, um pouco mais prolongada do que o habitual, que a leitura de um livro me impressionou de tal modo que, desde aí, sempre soube onde estava, e ao qual habitualmente regressei e reli, como se da minha bíblia se tratasse. Esse livro, O Paradigma Perdido: a Natureza Humana, pressenti-o logo, teria uma forte influência na minha forma de ver o mundo, e hoje, quase meio século passado, retenho essa perceção, embora agora vendo muito já pelo retrovisor da vida. Todos nós precisamos de referências, de rochedos, no mar ou em terra, que nos sirvam de norte, e que sejam uma companhia e um rumo neste mundo onde a muita solidão e a falta de rota são cada vez mais patentes. Sem eles, andaremos perdidos, porque não há vento favorável para quem não sabe para onde vai.

O autor deste Paradigma Perdido foi, e é, Edgar Morin, o filósofo da complexidade e um dos meus rochedos, alguém que ao ler, o que diz tem o sabor da água fresca bebida numa nascente a brotar da terra. Faz hoje, 8 de julho do ano 21 do século XXI, 100 anos. A sua esposa, Sabah Abouessalam, 38 anos mais nova, disse há poucos dias: “Edgar não tem idade, e estou a falar seriamente”. E as entrevistas e publicações nos anos mais recentes, comprovam-no. “Eu vou espantar-vos, mas digo-vos que após 11 horas de voo, por vezes, ele é capaz de dar uma entrevista depois do avião aterrar, e outra no hotel, com uma Caipirinha na mão, Edgar sente-se em casa em todo o lado, e por mais longínquo que seja o país onde se encontre”, disse ainda há poucas semanas Sabah à revista francesa La Revue pour l’intelligence du monde. Em França há justamente uma avalanche de cerimónias para comemorar este seu centenário, mas a sua dimensão de exemplo de defesa do ser humano e de humanização da ciência é de uma escala incomparavelmente maior.

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Esta crónica não é também mais do que a minha humilde homenagem a um homem e um combatente da liberdade que ainda hoje se enobrece com uma vida física e intelectual ativa, para não dizer irrequieta, e mantém um exemplo que é transversal à sua vida: um livre espírito que sempre permaneceu à margem das conveniências, do poder e, sobretudo, das hipocrisias e da barbárie do pensamento dominante. Foram diversas as vezes, e com diversos propósitos, em que Edgar Morin esteve no nosso país, que adora e admira, e onde já admitiu em certa altura poder ser o seu destino para viver, talvez pela beleza das nossas paisagens e da nossa cultura de tantas diversidades, ele que tanto as procura defender  ̶  ou também talvez pelas suas origens de judeu sefardita, os judeus de ritos e tradições distintas das do centro e do leste da Europa, cuja génese histórica tem as suas raízes em Portugal e Espanha. “Estou a pensar seriamente em instalar-me e viver em Portugal”, disse o filósofo há apenas quatro anos à agência Lusa, numa altura em que também elogiou o nosso país na “defesa dos valores da Europa do Sul. Portugal é o maior defensor da cultura do sul e do seu prazer pela vida, que o norte da Europa ‘já esqueceu’”, referiu então Edgar Morin.

Por duas dessas vezes, ambas em Lisboa, pude testemunhar (ou quase comungar) a sua visão, a sua ontologia, e a forma empática e quase carismática de comunicar em conferências, e de dizer de forma tremendamente simples coisas que, propriamente, estão muito longe de o ser. Uma perspetiva que não é a de um profeta que teve uma visão ou a de um discurso inflamado sobre ética de algum pastor americano pós-moderno, mas a de alguém que reflete sobre o mundo sem catecismos na mão nem interesses na carteira. E que põe mesmo em causa, o novo deus moderno, que dá pelo nome de Ciência, não devendo nós esquecermo-nos de que esta é também, e sobretudo, uma criação humana, com todas as imprecisões e limitações que lhe são próprias.

Nascido em Paris há precisamemte 100 anos, e dotado de uma visão renascentista do mundo, Edgar Morin tornou-se num estudioso do paradigma da complexidade e da liberdade, e um combatente na defesa da Humanidade e do humanismo. E, para isso, usou o conhecimento, mas um conhecimento que não deve ser mutilado nem fragmentado, mas o proveniente da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade resultante de uma abordagem a partir da ideia da complexidade natural da maioria das coisas e da incerteza das restantes. Sociólogo, antropólogo, filósofo, epistemólogo, ecologista, biólogo, cinéfilo, curioso avançado pela civilização, pela cultura, e pela hominização e pelo Homo sapiens sapiens, doutor honoris causa por 17 universidades, inspirador e ativista na Revolução utópica do Maio de 1968 em Paris, Edgar Morin até viu nestes acontecimento o brotar de algo novo e politicamente genuíno, mas a verdade é que sempre recusou soluções fáceis e visões a uma só dimensão.

Na sua pesquisa apaixonada sobre a natureza humana, Edgar Morin investiga com denodo desde a molécula à Via Láctea, do pagão ao sagrado, da ordem do caos à desordem da ordem, da biologia à cibernética ou do cérebro à sociedade, dos símios aos ecossistemas e da História à Ciência. E para religar o que é possível, e estabelecer as pontes pertinentes para criar uma compreensão maior da nossa condição e da nossa herança antropológica, o sociólogo não teme em socorrer-se de ferramentas, de métodos e de conceções heteróclitas, ele que nunca foi um ortodoxo de coisa alguma. E quis também criar outros, que o não são menos, para chegar ao homem, esse “animal dotado de despropósito”. E assim fala da antropossociogénese, da autorganização, de educação, da consciência antagónica, da complexificação multidimensional e da paleolinguagem, tudo conceitos que Morin sabe cruzar em polinizaçãoes estimulantes e férteis, numa escrita devastadora, um romance perturbador e de leitura sublime. O cientista elogia ainda o erro, “é ele que nos faz crescer”, nota que o conhecimento não é um caminho reto, “está cheio de ciladas, hesitações e correções”, e nas escolas o professor deve fomentar o “espírito crítico”, enquanto, garante, “a separação das disciplinas já não faz hoje sentido”.

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