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João Bianchi Villar joao.bianchi.villar@entroncamentoonline.pt

De Timothy Snyder, catedrático de Yale, chega-nos a seguinte reflexão: “Gustaw Herling-Grudzinski, que foi sujeito ao gulag de Estaline enquanto o irmão abrigava judeus, escreveu que «um homem só pode ser humano sob condições humanas». O objectivo do Estado é preservar essas condições, para que os seus cidadãos não precisem de ver a sobrevivência das pessoas como o seu único objectivo. O Estado é o reconhecimento, o apoio e a protecção de direitos, o que significa criar as condições sob as quais tais direitos podem ser reconhecidos, apoiados e protegidos. O Estado subsiste para criar uma sensação de durabilidade.” (in Terra Negra, 2015, p. 477).

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Quem idealiza as condições actuais dos portugueses, no tempo, na carteira e no espaço, tem uma necessidade clara de estabelecer a distinção entre os que sobrevivem e os que se sentem incomodados. No primeiro caso, a pobreza declarada ou envergonhada, medra e arrasta-se, encerrada em apartamentos de quarenta metros quadrados, na melhor das hipóteses, onde três gerações convivem numa economia do espaço e dos recursos. No segundo caso, aqueles a quem o elevador social ainda proporcionou a financeira diferença, gastam mais qualquer coisa para se entreterem na lancinante tristeza da sua varanda com vista para o rio ou da reflexão em torno de que é chegada a hora de comprar aquele monte alentejano que tanto lhes ficou na memória. Nestes últimos, conceda-se, a diferença ainda tem a ver com o tamanho do monte e da piscina. Porque, mesmo no endinheiramento, a vida não é igual para todos.

No meio disto tudo, temos o Estado. Aquele que deveria preocupar-se mais com o crescimento da pobreza do que com o inchar da extrema-direita. Isto porque, se se preocupar com a pobreza, a extrema-direita desaparece logo, como que por artes mágicas. Longe vão os tempos em que a extrema-esquerda representava as classes desfavorecidas e a extrema-direita os mais capitalistas. Hoje, os capitalistas, são social-tolerantes, e os desfavorecidos, dinheiro-dependentes.

Assim, como nos escreveu Simone Weil, “atravessamos um daqueles períodos em que tudo o que normalmente constitui uma razão de viver se esbate e desaparece, em que, a menos que queiramos afundar-nos na angústia, ou na inconsciência, tudo deve ser posto em questão.” (in Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social, 1934, p. 7).

Deste modo, enquanto desabafo estas linhas, no conforto de um muito abençoado meio-termo, medito que contributos hei-de dar para o novo Plano para a Recuperação e Resiliência (PRR), actualmente em consulta pública, e todos os jargões técnicos que o acompanham: “Resiliência”, termo claríssimo e que já nos deixa antever – finalmente – apartamentos com mais de 40 metros quadrados para os mais desfavorecidos, com menos ocupantes inter-geracionais, trabalho, salários e pensões acima dos 600 e tal euros por cabeça; “Transição Climática”, que permitirá, a médio prazo, que não se morra de frio ou de calor nos tais 40 metros quadrados, ou de escaldão nas enchentes estivais na praia de Carcavelos, que já se adivinham para os que não têm dinheiro nem para o Algarve; e, finalmente, “Transição Digital”, que proporciona a necessária distração em banda larga para enganar a fome às criancinhas, e o lenitivo suficiente para sublimar as contas do supermercado e as prestações de crédito em atraso dos mais graúdos.

Provavelmente, por questões de higiene, no país real, vou propor caixotes do lixo ecológicos, com separação de comida dos demais resíduos sólidos, para que os cada vez mais pobres deste nosso país real, não sobrecarreguem o já desgraçado SNS com mais outras tantas patologias.

João de Bianchi Villar

(por opção pessoal, o autor não escreve conforme a grafia do (des)acordo ortográfico)

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