Acendeu-se o Vermelho.
Sei lá por que razão, mas ultimamente apareces-me por entre as saliências da cidade ou em intervalos de maior quietude. Um dia disseste-me uma frase que tinhas lido algures, julgo que num livro do Saramago ou do Lobo Antunes ou seria do Vergílio Ferreira? Não me recordo bem agora, mas era qualquer coisa parecida com: “Tudo o que nos abandona leva muito tempo a sair da gente”, algo assim. Por essa ocasião estavas no sofá da sala, a levar o fumo dos cigarros até à caverna dos pulmões, isto enquanto tiravas do bolso uma caixinha de comprimidos para a tensão que, na verdade, se encontrava sempre cheia de rebuçados.
Dez segundos…
De cada vez que ia a tua casa, tínhamos o hábito de nos sentarmos ao lado um do outro, a olhar para o ecrã desligado da televisão, apenas entrevendo as nossas silhuetas refletidas no vidro, um bocadinho vaidosos, como se fôssemos duas estrelas num filme melancólico. Ficávamos ali, horas a fio, conversando sobre isto e aquilo, e tu, já com os setenta anos feitos, a dizeres-me que a frase do Saramago ou do Lobo Antunes ou seria do Vergílio Ferreira? Não me recordo bem agora, mas que a frase te apoquentava com muita força e que chegaras à triste conclusão de que já não eras bem um homem, antes um museu ambulante atafulhado de memórias, feridas e mortos que nunca te largavam.
Vinte segundos…
Agora um idoso a atravessar a passadeira, os seus passos lentíssimos, quase quietos. Talvez caminhe assim por não querer que a morte lhe chegue depressa. Até ele me lembra de ti, meu sacana. Das nossas conversas a vinte metros por hora, lembras-te? Sempre que digo a alguém que eu e tu falávamos a vinte metros por hora, as pessoas estranham e acham-me meio maluco. Depois, lá lhes explico que, uma vez por outra, saíamos da tua casa para ir almoçar no restaurante ao fundo da rua, a vinte ou trinta metros, se tanto, e demorávamos mais de uma hora para lá chegar. Tu constantemente a parar para contar uma história ou qualquer espanto que a vida te havia proporcionado.
Tinhas quase trinta anos a mais do que eu, mas gostava muito de ti, assim como se gosta dos amigos de infância.
(O idoso chegou finalmente ao outro lado da passadeira).
Trinta segundos…
Conheci-te eras já uma criança antiga. Na altura desejava muito que ouvisses as minhas canções e ensinasses a tocar piano. Elegantíssimo, acedeste.
Na primeira aula, tu para mim:
– Sabes por que motivo as mãos são mudas?
E eu, de olhos apontados para o tecto, a procurar respostas para um mistério daqueles, enquanto a tua mulher, certamente sabedora do segredo, se afastava com um sorriso e fechava a porta para ir tratar das rosas e buganvílias do jardim.
– As mãos são mudas porque nada lhes falta para serem felizes! Não precisam de voz para praticar o amor, nem de rir para justificar a felicidade. Basta-lhes a música, a poesia… e a ARTE, meu amigo, a ARTE! – respondeste assim.
Hoje, por vezes, quando calha, lá digo que a arte salva. E ao declará-lo estou também a resgatar a primeira lição de piano que tive contigo.
E nisto, um cãozito magro e amarelo, depois de mijar na perna do semáforo, vai rondar o caixote do lixo e focinhar alguns detritos. E até o magano do bicho se parece contigo, pá! Igualzinho! Contudo, em vez de cuvetes de frango e embalagens de margarina, tu só escarafunchavas retratos e memórias que te faziam chorar. Foste ficando revoltado e cinzento. Tudo na tua vida parecia pertencer ao reino das plantas secas e até os momentos bonitos que viveste se transformaram em nódoas negras por dentro e por fora. Chateia-me muito que tenhas morrido. Agora sou eu que pareço um museu ambulante, atafulhado de conversas, serões e lembranças tuas, coisinhas da nossa amizade que surgem por entre as saliências da cidade ou em intervalos de maior quietude.
Quarenta segundos…
Acendeu-se o verde.
Telmo Mendes
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