Sobre a secretária onde costumo escrever, existem uns quantos objetos que podiam ser da família dos aeroportos ou das cápsulas do tempo. Por vezes, ao pegar na caneta, não sei bem para onde ir, e essa é uma realidade que assumo com absoluta sinceridade.
Com o passar dos anos, tenho aprendido a contrariar tal condição, obrigando-me a entrar no escuro, qual mineiro em busca do brilho de pequenas pepitas. De caneta às costas, lá vou avançando às cegas, confiante de que alguma palavra, frase ou ideia, haverá de me cintilar no caminho.
Palavra de honra que não entendo, mas por norma, nestas incursões pelo escuro, acabo por me fascinar por coisinhas simples, que ninguém liga. Quase sempre gestos mundanos, muito discretos e praticamente impercetíveis, banalidades que se empoleiram por mim acima, que recebo com o mesmo encanto de um menino a apanhar pirilampos, sempre cheio de medo que a sua luz se extinga.
Obviamente, também me acontecem dias de maior sorte, onde me cruzo com gente carregada de infinita poesia. Solitários cheios de pluralidades, pessoas que num suspiro esvaziam o peito todo, ou, até, o vislumbre de uma mulher a ler um livro com uma nesga de ombro ao sol, e essa, acreditem, é a beleza para lá da possibilidade.
Acontece que, na grande maioria das vezes, estou somente aqui, isolado nesta secretária, a espalmar as mãos nos olhos, ao mesmo tempo que vou escrevendo páginas com imenso carinho e cuidado, mesmo sabendo que, no fim da noite, tudo estará amarfanhado no cesto dos papéis. E é nos momentos em que escrever se aproxima do deserto, naqueles em que a dúvida avança com dentes de leão, que os objetos em cima da secretária me resgatam para lugares subterrâneos, onde a luz se multiplica sempre e as palavras me voltam à cor. É uma questão de prática e levou o seu tempo.
Agora, por exemplo, um anelzinho que me ofereceram, uma rosa dos desertos que trouxe da Tunísia, umas quantas fotografias, a caneta com que assino os livros desde que ando “nisto”. E, como quem não quer a coisa, pousado entre duas torres de livros, está o relógio de pulso que o meu querido avô João usou toda a sua vida. Olho-o e, em poucos segundos, entro numa outra realidade. Acendem-se em mim uma catadupa de memórias, todas elas a quererem chegar-se à frente, procurando que as relembre e acenda, porque não há outra maneira de combater o esquecimento. Curiosamente, há uma mais persistente, muito nítida, que se destaca das outras (talvez por hoje estar a chover).
O meu avô, em frente ao janelão da cozinha, a dizer-me com uma expressão de espanto:
– Gosto muito de olhar lá para fora depois da chuva passar!
– Por que dizes isso, avô?
– Porque me parece sempre que os telhados e as árvores foram passados a verniz!
Acabei por lhe responder que também já tinha reparado, quando, na verdade, nem sequer tinha pensado nisso. À medida que me aproximo dele, para entrar na sua realidade, avisto lá fora um pombo, numa leveza de sonho, a pousar num galho molhado da oliveira. E aquele momento atravessou-me e ficou-me cá dentro.
Por estes dias a chuva já anda por todo o lado, a envernizar os jardins e as casas
com o brilho do inverno. As pessoas arrumam-se nos apartamentos, muito encolhidas nos sofás, para que o quente não lhes fuja. Estão para ali, com os olhos fixos nos televisores ou nos telemóveis, inventando formas de encher silêncio antes de se deitarem para dormir. Há os que sentem qualquer coisa a arder por dentro e fazem amor, que é uma espécie de dança onde não se leva a mal os apalpões. Há também os que trocam olhares e palavrinhas com os mortos nos retratos, puxando-os para si. Depois, bem… depois há os que olham para relógios velhos, onde os ponteiros ainda batem, pum-pum, pum-pum, qual coração cheio de asas.
São tão bonitos os telhados e as árvores depois de passados a verniz!
Não acham?!
Telmo Mendes
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