“Es-tig-ma”. E não, não é “ex”, como se fosse o prefixo de algo ou alguém que ficou no passado; pelo contrário, está bem presente e enfrentamo-lo todos os dias, nas mais diversas situações. Neste caso, do das coisas da mente, ainda mais.
A questão da doença mental é tema da maioria das agendas das organizações mundiais, bem como de uma parte considerável das conversas de café: se num caso programam-se planos para a promoção da saúde mental, no outro, estabelecem-se diagnósticos “à la carte”:
– Viste a Odília há pouco? Coitada… está tão inchada! Aquilo de certeza que é dos medicamentos que ela toma para a depressão…
– Mau, mas é uma depressão ou um esgotamento? Olha, eu acho que o sobrinho dela disse que tinha sido um esgotamento nervoso…
– Ó mulher, sei lá! É uma coisa dessas! Isso é tudo igual!
(pausa para respirar profundamente)
Não, não é tudo igual, e certamente que um/a psicólogo ou um/a psiquiatra serão as pessoas mais capacitadas para fazer esse esclarecimento.
Felizmente que o tema está cada vez mais na ordem do dia, que se trata nas conversas de café, nos meios de comunicação social, que as figuras públicas partilham as suas experiências pessoais no Instagram (olha p’ó Raminhos!), que se debatem medidas de prevenção nas instituições. Mas será que toda esta, aparente, abertura acerca da doença mental se centra apenas no campo do debate ou vai mais além? Será que ainda faz sentido falar sobre estigma neste campo?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta o estigma associado às condições de saúde mental como um dos principais fatores que dificulta o acesso ao tratamento e à inclusão social dos doentes. Portanto sim, ainda existe, e a maioria dos países membros da OMSi têm esta questão no topo das prioridades dos seus programas de saúde.
O “stígma” (vocábulo grego que deu origem à palavra atual) na Antiguidade referia-se a uma «marca de ferro em brasa» que era infligida nos indivíduos, sobretudo escravizados ou criminosos, com o intuito de diferenciá-los dos demais. Atualmente, na Contemporaneidade, o seu sentido é simbólico, mas damos continuidade ao ato: continuamos a infligir marcas de dor em pessoas que já estão dominadas, neste caso por uma condição de saúde,
A subtileza com que uma doença mental pode aparecer nas nossas vidas é a mesma com que rotulamos o individuo X ou Y:
– Vá lá, arrebita; isso é tudo da tua cabeça!
Rotulamos, estigmatizamos e muitas vezes sem nós próprios termos consciência ou intenção disso. Muitas vezes desejamos apenas que a pessoa que nos é querida, levante a cabeça e volte a ser quem conhecemos; outras vezes, estamos tão embrenhados nas nossas próprias questões que não temos disponibilidade de aprofundar o tema. Ou então, simplesmente repetimos as palavras que ouvimos os nossos pais ou avós dizer:
– Quando uma pessoa não ‘tá bem, põe-se!
Tal como a doença mental, o estigma não é visível. Também não há receita nem medicamento para o estigma, porque o estigma não é doença, é um comportamento que deixa os que estão doentes ainda mais perturbados, e os que o praticam (consciente ou inconscientemente) mais limitados no seu campo de visão (e de ação).
Talvez não tenhamos de “calçar os sapatos do outro” para integrar esta realidade. Talvez seja suficiente respeitar o outro: respeitar que gere as coisas de modo diferente do nosso, que enfrenta dificuldades que nós não conhecemos. Se a tudo isto (que já não é pouco) podermos acrescentar um abraço demorado… estará a missão deste texto, que é de sensibilização, cumprida.
E porque é que uma formanda em Sociomuseologia procura sensibilizar para as questões da saúde mental? Porque tem a crença profunda que cada um de nós é um agente de transformação social – seja na sua casa, no seu grupo de amigos, ou na sua comunidade – e que a nossa posição face aos problemas da sociedade é também uma forma de promover maior justiça social.
Nota de pé de página: as personagens do diálogo foram propositadamente selecionadas do universo feminino, porque vós, homens, neste campo não há igualdade de género que vos safe! Infelizmente o estigma ainda é mais enraizado no vosso universo, no qual o indivíduo – símbolo de masculinidade e por consequência de força e resistência – é facilmente entendido se apresentar uma disfunção cardíaca, mas é incompreendido se apresentar sinais de sofrimento físico e emocional, como numa perturbação do pânico, por exemplo.
Nos diagnósticos “à lá carte” (aqueles das conversas de café) muitos serão rotulados de simples “foras-da-lei”; outros, na melhor das hipóteses, terão o rótulo de génios ou de artistas (obrigada
pelo estereótipo, Einstein!); e nem aqui, neste jogo de meras especulações, podemos escolher o que nos vai calhar!…
Aquilo que podemos escolher é dar prioridade ao nosso bem-estar; podemos escolher cuidar da nossa saúde com a paciência e resiliência que qualquer caminho de recuperação requer; escolher pedir ajuda quando nos sentimos incapazes ou cansados; e escolher alimentar a esperança a cada passo que é dado nesta jornada.
i Atlas da Saúde Mental (2021). Os dados da publicação referem-se aos países membros que participaram no estudo. Os programas relatados com mais frequência foram programas de conscientização sobre saúde mental/anti estigma (51% dos países que responderam) e de prevenção da saúde mental nas escolas, seguidos pelo desenvolvimento da primeira infância (45% dos respondentes) e dos programas de prevenção do suicídio (39% dos países respondentes).