Henrique Leal henriqueleal@entroncamentoonline.pt
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Há datas assim. Desprendem-se do calendário e querem medrar, andar por aí, serem maiores que o sonho se é que alguma vez sonharam, enfim, ir além da chinela como dizem os sapateiros.

Entrei para a Força Aérea Portuguesa com dezoito anos e por lá me aguentei durante seis anos. Seis anos cruciais na minha história de vida, por sinal.
Depois de realizar o curso de oficiais milicianos na Base Aérea 2 na Ota, fui colocado na Base Aérea 3 em Tancos e por lá estive cinco anos. Estava lá quando retomei os estudos na universidade como trabalhador-estudante, estava lá quando ocorreu o 25 de Abril de 1974, estava lá quando ocorreu o 11 de Março de 1975, estava lá quando correu no calendário o 25 de Novembro de 1975, estava lá quando me casei, estava lá quando nasceu o meu filho mais velho.

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Da data gloriosa de abril de 1974 recordo a generosidade simples e desprendida de alguns militares de abril que conheci pessoalmente, recordo a celebração do meu 1º de maio em liberdade, com uma grande manifestação em Torres Novas em 1974, recordo a alegria de sermos livres e a enorme esperança num futuro de paz e desenvolvimento. Também recordo a mudança na atitude dos nossos instruendos (estive cinco anos ligado à instrução militar) que, depois de abril, andavam com a garimpa mais alevantada e já não tinham medo de fazer perguntas.

Do 11 de março de 75 recordo a chegada do general Spínola na véspera à noite, recordo um séquito de militares estranhos e estranhamente fardados e armados até aos dentes que se pavoneavam por aqueles dias nas imediações da torre de comando e iam jantar à messe de oficiais. Também recordo que no dia 11 levantaram voo na base uns T6, uns caças muito rápidos que, soubemos depois, foram largar umas bombas algures por Lisboa. Pelas 11 horas da manhã os recrutas, com o rádio colado ao ouvido a ouvir as notícias acerca do que se ia passando, queriam respostas porque na rádio diziam que os aviões iam da nossa base bombardear o Ralis e eles tinham a mãe, a namorada ou já mulher e filhos a morar nos Olivais ou na Encarnação ou em Sacavém e queriam saber o que é que se estava a passar. E nós, instrutores sabíamos tanto como eles, ninguém nos tinha contado nada e os nossos superiores também não tinham respostas.

Também recordo que às duas da tarde não conseguimos segurar a parada. De repente o dique cedeu e seiscentos mancebos de fato de macaco azul destroçaram desordenadamente e correram para a torre de comando, empunhando a mauser da instrução, numa grande algazarra, pasme-se, uma grande manifestação mesmo no coração da BA3. Começaram a arrombar as viaturas topo de gama por ali estacionadas e começou a surgir muito armamento, pequenas metralhadoras, dezenas de pistolas e muitas, muitas munições. Juntamente com dois furriéis que me assessoravam na instrução, corri atrás deles até à torre de comando e face a tais descobertas conseguimos estender uma lona no chão, qual panal da azeitona, e lá se foram amontoando aqueles achados inusitados. Não houve um único tiro. Nem poderia ter havido. A espingarda mauser da instrução estava naturalmente sem munições. Aquela parafernália de munições dos capangas do general Spínola que lográmos amontoar no tal panal podia ter originado uma carnificina. Nos varandins da torre estavam uns sujeitos de camuflados a dar para o negro e outros todos vestidos de preto, armados até aos dentes, a controlar os movimentos da turba cá em baixo. Se tivesse ocorrido um tiro que fosse… Mas não, não houve qualquer tiro.

O que houve a partir das três da tarde foi ordem de prisão para o comandante da base e para mais uma dúzia de militares envolvidos na tentativa de golpe. A um camarada de armas foi ordenado que juntasse uma patrulha e se deslocasse ao hangar dos Noratlas para dar ordem de prisão ao general Spínola e aos outros militares que estavam com ele. Quando lá chegou já ia a levantar voo um helicóptero com aqueles conspiradores em fuga e, por razões óbvias, considerou o meu camarada prudente não disparar qualquer tiro. Também recebi ordem para prender um alto graduado da base. E à noite, foi-me ordenado levar o jantar e colchões e mantas para alguns daqueles detidos.

Em novembro tirei uns dias para a azeitona. Estava de regresso à base na manhã do dia 25 quando me intercetam no caminho a perguntar o que vou lá fazer. Respondo que me vou apresentar depois das férias da azeitona. Volta para trás, se entras na base és preso. Preso, mas porquê? Volta para trás. Voltei para trás, voltei para a azeitona. Apresentei-me na outra semana e fui falar com os meus superiores e com o oficial da segurança. Não, que estava tudo bem, podia voltar ao meu posto de trabalho.

O 25 de Novembro não existiu. Foi apenas uma data, um equívoco que se soltou do calendário. Os militares envolvidos no 11 de março, foram presos, estiveram uns meses afastados, mas foram todos reintegrados, receberam todos os salários e foram promovidos. No regresso às unidades muitos foram colocados em lugares de chefia. Aguardavam uma oportunidade para se vingarem daquela rapaziada que os tinha apoucado, que os tinha travado na tentativa de golpe contrarrevolucionário. Aquela meia dúzia de paraquedistas que em novembro ocupou o quartel de Monsanto, a troco de uma qualquer reivindicação corporativa, serviu-lhes de bandeja o pretexto. O cerco da assembleia da república, uns dias antes, já não sei bem por quem nem porquê, deu-lhes o enquadramento político, isto é, sentiam as costas quentes.

A rapaziada conotada com a esquerda militar foi corrida a varapau, alguns foram detidos ainda hoje não sabem porquê e no fim foram todos saneados. Os do 11 de março, golpistas, foram todos reintegrados e promovidos. Em novembro foram todos saneados. Dizia o coronel Vasco Lourenço, numa entrevista há poucos dias, que a direita militar com alguns setores da direita política à boleia, queria continuar em novembro o que não tinha conseguido em março. É esse o 25 de novembro que a direita e a extrema-direita com alguns papalvos à mistura estão a comemorar agora. Se pudessem apagavam o 25 de Abril do mapa das nossas mais belas recordações. Tenham vergonha na cara.

Henrique Leal

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