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Quantos sapatos calça alguém no decorrer de uma vida? Dezenas? Centenas? Milhares? Céline Dion, que voltou aos palcos recentemente após uma doença neurológica rara ter imposto o seu afastamento, revelou possuir mais de dez mil pares de sapatos, o que dá que pensar. Quanto a mim, não devo ter mais de uma dúzia, quatro deles alinhados ao fundo da cama, dentre os quais escolho a cada manhã onde enfiar os pés para fazer o caminho desse dia.

Quando os meus pais eram crianças os sapatos eram um luxo a que nem todos tinham direito nesse Portugal dos pequenitos, havendo quem não possuísse uns únicos sapatos dignos desse nome. Felizmente hoje praticamente todo o par de pés que caminha, rico ou pobre, anda calçado, melhor ou pior. E nem é preciso caminhar, porque os meus filhos tiveram sapatos antes mesmo de aprenderem a andar. Ainda guardo o seu primeiro par de sapatos, o mesmo que serviu dois pares de pés, e que bem poderia ter servido um batalhão de pezinhos se eu tivesse dado à luz um batalhão de criaturas, porque foram sapatos que nunca conheceram chão, e que por isso nunca se gastaram. Porque é o contacto com o chão que faz o tempo passar pelos sapatos, o caminhar dos pés em direcção a um destino é que faz valer o tempo de uma vida. Não concordam?

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Só na cama e na campa se dispensam os sapatos. E apesar de fazermos muita questão em enterrar os nossos mortos calçados, eu tenho para mim que, assim que se vêm sozinhos, eles mandam os sapatos às urtigas antes de abraçarem a vida eterna. Até porque o pé descalço é sinal de humildade, e na morte afinal somos todos humildes. Não há riquezas nem títulos que venham em nosso auxílio depois da vida. Dez mil pares de sapatos não nos servem então de nada. O outro fazedor de humildes universal é, pois claro, o amor, uma vez que não há como ele para fazer dobrar a espinha ao orgulhoso mais teso.

Eu usei, até a uma idade embaraçosa, botas ortopédicas. Botas da tropa, correctoras, duras, escuras e feias, e nessa época, naturalmente, eu sonhava era com sandálias, finas e delicadas. No dia em que o médico me autorizou, finalmente, a usar calçado civil, corri uma fiada de sapatarias em busca de umas pirosas sandálias brancas, de tiras de enrolar às pernas quase até ao joelho. Que dia festivo esse.

Entretanto, depois dessas sandálias, já enfiei o pé em muito tipo de calçado. Rasos, de salto, com fivela, com atilhos, finos, grossos, pesados, leves, enfim, é todo um historial de sapatos, diferentes pares para diferentes fases, pois que é precisa muita experimentação para saber com certeza científica que tipo de calçado verdadeiramente condiz com a nossa personalidade. Sobretudo aprendi a escolher bem e não me esqueço que sou eu que uso os sapatos, não são eles que me usam a mim.

Chocou-me saber que a diva Céline Dion calça sapatos dos números 35 ao 40. Segundo partilha no documentário “I Am: Céline Dion”, ora encolhe os dedos dos pés para os fazer caber à força dentro de sapatos apertados, expondo-se às bolhas, à unha encravada e ao joanete – tudo coisas muito pouco sensuais –, ora mantém-nos abertos como os dentes de uma forquilha, para que lhe não caiam dos pés ao andar. Ou seja, o facto de não haver na sapataria o seu número, que se situa a meio entre o 35 e o 40, não a demove de comprar os sapatos que a cativaram. O mais intrigante é que ela diz exactamente o que eu afirmei no parágrafo anterior, “eu uso os sapatos, os sapatos não me usam a mim”. Não? A sério? É que a mim parece-me que são os sapatos que levam a palma à Céline e não o contrário.

Num certo mês de Junho, teria eu quinze anos, uma carrinha de caixa fechada estacionou durante uma semana à porta do prédio onde eu vivia, numa tranquila rua da cidade de Tomar. À noite, da janela do meu quarto eu podia ver dois pares de sapatos alinhados, muito juntinhos, no chão debaixo da carrinha, junto às portas traseiras. Eram ténis, uns possivelmente número 42, de homem, outros talvez 38, de mulher. Fossem quem fossem, os donos dos ténis teriam um colchão ou um saco-cama no interior da carrinha, onde passavam as noites. Recordo que me punha a imaginar que género de pessoas seriam. A curiosidade tinha razão de ser, uma vez que a carrinha abanava ligeiramente todas as noites. Quando dei conta, tinha a família reunida no meu quarto, todos debruçados do parapeito da janela. Quem seriam, quem não seriam? O meu pai ria daquela candura despudorada, onde já se viu, no truca-truca mesmo nas nossas barbas? Eu era então uma adolescente tola e cheguei a sugerir surripiarmos os sapatos, por graça, mas acharam todos uma ideia parva e eu calei-me, envergonhada. A minha mãe apostava que eram jovens, um casalinho de férias, sem dinheiro para pensões. Mas há um parque de campismo aqui mesmo ao lado!, respondia o meu irmão. Talvez tivessem fugido de casa, talvez um deles fosse menor de idade. Ali tinha de haver história. Não os chegámos nunca a ver. De manhã, quando saíamos de casa, os ténis estavam lá, e nunca os víamos regressar, sabíamos apenas que recolhiam cedo à privacidade da carrinha, e que não era para dormir.

Céline Dion, que confessa a sua tendência para a acumulação, guarda a sua desmesurada colecção de sapatos num armazém em Las Vegas. Hoje penso que deveria ter guardado pelo menos um par das minhas botas ortopédicas, para recordação desse desconforto por que passei. O único calçado que guardei, muito em segredo, e durante mais anos do que quero confessar, foram dois pares de ténis que roubei certa madrugada, há muito tempo de sob uma misteriosa carrinha de caixa fechada. Chiu. Não contem a ninguém, está bem?

Se me é permitido deixar um conselho às adolescentes que venham a ler estas palavras, possivelmente aqui chegadas enganadas pelo título e julgando que se trata de uma crónica sobre sapatos e moda, aqui vai:

Evitem toda e qualquer forma de calçado mortificante e prefiram, para caminhar vida fora, o descomplexado conforto de sapatos amigos dos vossos pés. Por exemplo, um bom par de ténis…

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