Para o bem e para o mal, as novas tecnologias têm acelerado as mudanças no mundo, e elas têm sido tantas que me vou dispensar de as enumerar, pois não só a lista é virtualmente interminável como eu serei obrigado a confessar que boa parte desses gadgets, nem que sejam de média gama, eu não os identifico nem entendo. Tenho bastas provas e comprovações disto quando entro em algumas lojas tecnológicas para alguma aquisição mais convencional e encontro dispositivos e equipamentos, geralmente com nomes um tanto insólitos e até de difícil pronúncia, que eu nem sei interpretar nem tenho a mínima ideia de para que servirão ou poderão ser úteis. Mais difíceis de perceber, sim, do que algum ovni à noite no firmamento.
Mas não é isso que me vai deixar inibido ou desmoralizado, nem tão pouco quando reparo porventura em três ou quatro imberbes adolescentes à volta de um desses ignaros apetrechos a avaliar com indiscutível entusiasmo todas as funções de que aquele indecifrável traste é capaz quando o conseguem acoplar às suas parafernálias tecnológicas. O mundo é assim mesmo. Uma coisa é ter nascido na Europa no boom da natalidade após a segunda guerra mundial, outra coisa é ser um nativo digital, pertencer à Geração Z, ter crescido com o advento da magia da World Wide Web e com a popularização dos computadores pessoais, e pertencer-se a tribos que quando deixaram de gatinhar e subiram para uma cadeira já havia um teclado e um computador em cima das mesas à sua espera. É claro que o uso e consumo de tecnologias em maior ou menor grau, tal como o futebol, a religião, a arte ou a política são convicções e opções pessoais em que todas as comparações, além de impróprias, são odiosas e só podem gerar o pior que há nos seres humanos. Et pourtant…
As tecnologias, em si, talvez sejam mesmo neutras, não tenho sobre isto e em absoluto nenhuma certeza. A Internet tem lá dentro o céu e o inferno, o alfa e o ómega. É tal e qual como o mundo. E somos nós que, dispondo do nosso arbítrio, escolheremos a parte dos conteúdos que mais nos atrai ou interessa. Mas verifico, todavia, que, fruto delas ou não, começam a surgir preocupantes mudanças de mentalidade nas pessoas que não me deixam de intrigar. Acredito que em relação às novíssimas tecnologias digitais seja preciso manter uma posição de reserva, de contenção e sobretudo de espírito crítico ⎼ e não entrar no barco só porque o barco vai a passar… Isto não é ser ludita, mas apenas manter as coisas na devida perspetiva. É a aurea mediocritas, a preferência pelo ponto mediano e pelo bom senso, e não ir atrás do desastre, como os ratos foram com o flautista de Hamelin, apenas porque tocava uma melodia que os hipnotizara. A verdade é que começam a surgir atitudes e comportamentos, até de pessoas antes normais, já um pouco esquisitos e até excêntricos.
Um dia destes fui tratar de um assunto pessoal e sem relevância especial a uma instituição da nossa região, e logo depois de transpor a porta de entrada, deparo-me com um minibalcão, onde pontificavam um computador e uma funcionária que mais parecia uma hospedeira de bordo da Pan Am (mas sem o sorriso homónimo, bonito mas oco, que celebrou tais maravilhosas criaturas). Do teto sobressaiam e até sobravam uns equipamentos de videovigilância em nome da segurança, do controlo e até da extravagância. Ela parecia um scanner, mas em pessoa. Tudo normal, portanto. Referindo eu logo no início que não se inquietassem, que o meu caso era pessoal e modesto, estranhei um pouco que para me anunciarem a essa pessoa me perguntassem não o nome mas o NIF e mais uma série insípida de dados absolutamente inapropriados para o caso. Apenas números, como num regimento, e eu usasse bivaque e farda… O nome e um número são coisas muito diferentes: no nome está uma pessoa, e deve ser tratada como tal; no número mora a indistinção e a indiferença, e impõe-se a cultura de massas. Saí dali a perguntar-me que mundo era aquele, mas a pensar que era este mesmo o mundo que se estava a aproximar, e velozmente…
Noutra altura, e acompanhando até uma instituição de saúde um familiar próximo, percebi a atenção preocupada da médica que o consultou e que providenciou para que todo o sofrimento que via sentir pudesse ser minimizado, não se dispensando de dar palavras de esperança, que foram importantes. Foi muito além da simples competência e do profissionalismo mais estrito. De motu proprio senti que todo o seu empenho devia ser registado num livro próprio. É claro que teria alguma modéstia este meu louvor, mas senti que o devia fazer, era justo, e sempre seria uma forma de reconhecimento para quem, sem um interesse particular, tinha ido bastante mais além do que era o protocolo profissional… Estranhei então terem-me dito que ali livros para esses reconhecimentos não havia; livros para escrever, só o de reclamações… Estamos sempre prontos para reclamar, e parece que até haver uma certa dificuldade em reconhecer os merecimentos dos outros… É uma cultura canalha e que se entrusou, sempre mais atenta e sensível às falhas (dos outros) que ao destaque pelos méritos e pela exceção.
Talvez eu deva ainda referir o caso de um velho amigo que sempre teve alguma tendência para a eremitagem, reforçada com um casamento que teve uma entorse, e uma relação há muito incompatível com os filhos, já adultos. Encontrou no computador, na Internet e nas redes, o que parecia ser a sua redenção como ser humano. E dessa situação dava-me conta de tempos a tempos. No Second Life (parece-me ter sido esta a designação que deu da dita redenção) fora promovido a comandante de uma brigada radical que lutava tenazmente, segundo dizia, pela defesa dos oceanos, do clima, do ambiente e de outras nobres causas. Era uma second life virtual e imaginária que lhe consumia boa parte das horas reais de cada dia, mas em compensação capaz de ser heroica e onde exercia a sua bondade humana e natural, a mesma que não se atrevia a praticar na vida real. Soube há dias que a confiança que depositara nesses amigos climáticos claudicara. Depois dos seres reais, também os compagnons de route virtuais haviam maculado o seu sonho. Vive agora num monte com o velho rafeiro que um dia resgatou de um poço onde caíra.
São tempos estranhos, estes, em que a cultura de massas parece esmagar, conspurcar e deixar um rasto pior que a mais voraz das tempestades tropicais.