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Vivemos no tempo do esquecimento e do momento que passa. As pessoas estão muito focadas em si mesmas, e valores que foram transmitidos de geração em geração, como o culto da memória, ou seja, lembrar quem merece ser lembrado, começam a ficar para trás.

Esta introdução vem a propósito de uma dessas pessoas esquecidas, Manuel Rosa Valério, que fez parte da Santa Casa da Misericórdia, desde o tempo inicial desta, quando ela tinha, como obra única, o Posto Hospitalar, hoje Hospital de São João Baptista.

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Nesse tempo em que não havia grandes ajudas financeiras, em que os subsídios eram escassos, e a pobreza no Entroncamento era muita, vivia o Posto Hospitalar das ajudas dos benfeitores, não só em dinheiro, mas em géneros, ou outros artigos necessários. O trabalho dos três médicos de serviço era gratuito, gratuitas eram as consultas para os mais pobres, era a misericórdia da Misericórdia.

Foi num tempo assim, em 5 fevereiro de 1964, quando já exercia interinamente o trabalho de Provedor, que Manuel Rosa Valério assumiu, oficialmente, essa função. E nesse lugar cumpriu trinta e cinco anos ininterruptos de trabalho, e mais aqueles em que foi Provedor interino.

O Sr. Valério foi Provedor de 1964 a 1999. E foi ele, como Provedor, que sofreu os tempos mais duros da vida desta instituição, quando fez a sua entrega ao Estado, em 1975, com a nacionalização determinada pelas circunstâncias e legislações do novo regime, e depois, quando recebeu o património degradado, património que reergueu, obra que ampliou.

Foi Manuel Rosa Valério o primeiro a pensar num Lar para os idosos, o Lar Fernando Eiró veio depois. E não só pensou, como passou à fase do projeto, posteriormente entravado por incompatibilidades legais, história que é contada no semanário local O Entroncamento, numa conversa entre o professor Francisco Corujo e o próprio Valério.

O professor já estava aposentado e idoso, e, por isso, preocupava-o a sorte dos idosos no Entroncamento, isto em 1969, o que o levou junto do Provedor, para saber se ele teria projetos nesta área. A conversa que decorreu entre ambos, está registada assim:

Logo nas nossas primeiras perguntas verificámos que a Santa Casa da Misericórdia já há muito que está tratando do assunto, informando-nos o sr. Provedor da preocupação em que se encontra com o número sempre crescente de pessoas idosas que procuram o nosso Hospital, para internamento, mais pela sua idade e desamparo do que, propriamente, por doença. Como a função do Hospital não é a de assistência à velhice válida, não podemos receber estas pessoas, o que bastante nos penaliza, e por isso, continua o senhor Provedor, a Santa Casa pensou construir quatro lares para casais idosos nos terrenos anexos ao Hospital.

Por isso fez o necessário pedido à Direção Geral de Assistência, que elaborou o respetivo projeto, o qual mereceu parecer favorável dos serviços Técnicos da nossa Câmara.

Quando tudo parecia estar bem encaminhado para um breve princípio de execução dos trabalhos, a Direção Geral dos Hospitais informou a Santa Casa de que não permitia a construção dos referidos lares nos terrenos anexos ao Hospital, em virtude de os mesmos se destinarem única e exclusivamente a instalações hospitalares que, num prazo que poderá ser muito breve, terão de ser ampliadas, dado o alargamento da assistência já verificado no nosso Hospital.

Não obstante, diz ainda o sr. Provedor, o assunto continua a ser a sua preocupação, pelo que está trabalhando no sentido de adquirir terreno tanto quanto possível próximo do Hospital, onde os referidos lares possam vir a ser construídos, para que a sua manutenção seja assegurada pela Santa Casa da Misericórdia.”

Em 1975, foi promulgado o Decreto-Lei 618/75, determinando que os hospitais concelhios pertencentes a pessoas coletivas de utilidade pública, e o respetivo património, revertessem em propriedade para o Estado, passando a desempenhar as funções de hospital concelhio no âmbito do serviço nacional de saúde.

Coube a Manuel Rosa Valério a penosa tarefa de tudo preparar para essa entrega, desde inventários a preenchimento de papeladas.

Entretanto, tinha-se começado a pensar, novamente, num lar, desta vez por iniciativa de Fernando Eiró, em 1974, o qual teve a sua concretização em 1979, como Lar Fernando Eiró, funcionando, provisoriamente, com 13 idosos, na antiga casa de Proteção aos Indigentes, conhecida como a Sopa dos Pobres, cedida pela Junta de Freguesia, desde 1975, enquanto a construção do Lar decorria.

O Lar Fernando Eiró começou a ser construído em 30 de março de 1977, num terreno oferecido por D. Graciete Guia Agostinho.

Em 1985, a Administração Regional de Saúde de Santarém determinou a elaboração de um estudo técnico do Hospital do Entroncamento, devido a remodelações necessárias, para poder funcionar, e as mesmas foram desaconselhadas, por já ter sido aprovado um centro de saúde, e por não ser conveniente a existência de instalações dispersas, devido ao aumento de custos e à falta de funcionalidade.

Lembramos que ao tempo deste estudo, ainda o Hospital do Entroncamento estava na posse do Estado.

Na verdade, o que mais sobressaía, naquele caso, não era a dispersão, mas a falta de condições físicas, o estado de degradação das instalações do antigo Hospital da Misericórdia, e por isso, a mesma Administração Regional de Saúde passou a articular-se com a Santa Casa da Misericórdia do Entroncamento, com vista à devolução daquele serviço à mesma instituição a que já pertencera.

A Manuel Rosa Valério coubera entregar, a ele lhe coube receber. E diz um ofício do chefe de gabinete da Ministra da Saúde (Leonor Beleza), em 23 de outubro de 1986:

No sentido de ser garantida a manutenção do SAP [Serviços de Atendimento Permanente] à população, continuará o Centro de Saúde do Entroncamento a utilizar parte do edifício, a menos danificada do ex-Hospital, limitando-se a Administração Regional de Saúde a suportar o pagamento de uma renda proporcional à área ocupada, tendo como subjacente o valor da renda atual pelo espaço total.

Por outro lado, atendendo aos danos causados, ao estado de degradação das instalações e à necessidade de as continuar a utilizar, a bem dos interesses da população, e à responsabilidade cometida à Administração Regional de Saúde, por contrato de arrendamento existente, entendeu-se entregar à Misericórdia 850.000$00.”

Durante 1985 e 1986, foi Manuel Rosa Valério quem manteve o diálogo com o Governo, no sentido de reaver o Edifício Hospitalar.

Foram muitas as vicissitudes para quem teve de começar tudo de novo, em relação ao Hospital da Misericórdia, no restante continuava o trabalho do
Provedor, que não se interrompera com a cedência do Hospital ao Estado, porque havia o Lar Fernando Eiró.

Uma vida de entrega à Santa Casa da Misericórdia, e não existe uma homenagem, uma memória evocativa que recorde o seu nome e a sua dedicação de tantos anos.

Não é justo.

MANUELA POITOUT

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