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De um momento para o outro, elas passaram a circular de rompante e de modo bastante ousado e intrusivo nas ruas e ciclovias da cidade. São a big thing de momento e, como disse, apareceram de uma forma alucinante a conspurcar a circulação entre peões e o trânsito mais convencional nas ruas, praças, ciclovias e estradas da urbe, que nasceu ferroviária, mas hoje já está muito cosmopolita e modernizada. Na verdade, hoje, para se ser moderno, estar au point, e conseguir despertar entre os adolescentes e na malta das tecnologias e das cenas virtuais, uns olhares de fantasia do tipo “ai se eu pudesse, também queria uma”, é preciso alardear uma e vaguear e exibir-se com ela de forma vistosa. É uma visão de vanguarda, sustentável, ecológica quanto baste e que adota uma quantidade significativa de ícones de tretas da modernidade. Na verdade, uma versão atualizada e vintage das antigas bicicletas com um espampanante espelho retrovisor com fitas decorativas pendentes à esquerda, que antigamente os seus beneficiários passeavam com garbo e com os seus fatos domingueiros, com uma mola a apertar a bainha da perna direita das calças (por causa do óleo da corrente) e a ouvir o relato do futebol no rádio portátil, que uma das mãos cuidadosamente segurava.

Na realidade estas novas viaturas de circulação urbana são o máximo, digamos assim, em matéria de mobilidade urbana. Têm tudo para simpatizarmos com elas, pelo design, pela conceção, pela elegância, pelo minimalismo, pela ecologia, mas na verdade são uma praga que invadiu a cidade, e tanto mais o é, pelo facto de o Entroncamento, pela sua planura, pela ortogonalidade ruas, pela rede considerável de ciclovias e por uma ou outra praça pública mais ampla e acolhedora, se ter tornado num habitat particularmente propicio e até paternal à sua proliferação sem freio nem antídoto.

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Circulam no burgo com uma liberdade e um descontrolo invejável. Denotando um equilíbrio apreciável e quase de acrobata sobre a minúscula plataforma a que só uma enorme habilidade permite assentar os dois pés, deixem passar os trotinistas (o termo não está ainda dicionarizado, mas entende-se, os dicionários andam sempre um pouco mais devagar), que deles será o reino das vias públicas. Usam as ruas e frequentam assiduamente os passeios, passando mesmo resvés Campo de Ourique à saída dos moradores mal estes dão o primeiro passo para fora das residências; circulam pela direita, pelo meio ou pela esquerda das estradas, e deambulam destas para as passadeiras, e vice-versa, indistintamente e, naturalmente, sempre da forma que mais lhes interessa; aos semáforos, se o sinal não convém, apeiam, tornam-se peões, avançam quatro ou cinco passos e voltam a converter-se em trotinetistas já sem o incómodo de um sinal inconveniente pela frente. Nas praças públicas, havendo algum espaço disponível aceleram com eficácia e depois, podem fazer um ágil slalom em freestyle entre as esplanadas, ou mesmo entre as mesas de uma delas. E, sem complexos nem azedumes, nem que seja para simplesmente matar o tédio, circulam com luzes LED ou sem elas, com ou sem seguros de circulação, com ou sem carta de condução, com capacete e sem capacete, a mais ou a menos de 25 Km por hora, com motor elétrico ou movidas a impulsos com o pé, em desdobráveis ou não, e conduzidas com tino ou sem ele, há modalidades para tudo, e regras para cada versão tudo funciona maravilhosamente mas só até ao momento em que alguma vez ocorra um problema mais grave e que, como já não se pode evitar, tem de se resolver.

A trotineta, no seu mundo maravilhoso, pode parecer um modo de circulação urbana inócuo, inocente, ecológico e compaginável com a modernidade, não só pela taxa de carbono que envolve como pela sua adequação a um mundo que privilegia a independência, a individualidade e o desenrascanço. Pode parecer e tem tudo para o ser. Há trotinetistas exemplares, fazem o que deve ser feito, e evitam o que é para evitar, mas nem todos são assim, longe disso, há verdadeiros cowboys urbanos para quem as suas trotinetas são um misto de cavalo do Faroeste americano e de um objeto arriscado, a começar por o perigo apontar em primeiro lugar para si próprio. E assim, e meramente a título de exemplo, já vi demasiadas vezes umas trotinetas conduzidas por jovens nas ciclovias que, em pé sobre os seus velocípedes, cruzam ruas perpendiculares num espírito de verdadeira roleta russa, pois não olham nem abrandam nem querem saber. Felizmente, que eu saiba, ainda nada aconteceu, ainda bem.

Num final de tarde, há duas ou três semanas, um jovem, pelos seus 13-14 anos, foi um dos exemplos que fez uma destas roletas, ali para os lados da Rua da esperança. Todavia dois ou três minutos depois, e já de regresso, repetiu a façanha, nova roleta russa, nada aconteceu, mas eu pedi-lhe, nas calmas que gostaria de falar com ele. Nestas situações podemos apenas tomar duas atitudes: intervir ou ignorar. Eu, que já pertenço a uma estirpe mais antiga e démodé, e nunca lidei muito bem com a indiferença quando algum caso me exigia algo mais, decidi intervir. Ouviu-me com respeito e agradeceu, sem mostrar qualquer agastamento ou incómodo, depois seguiu.

Há um caso que, todavia, e por o ter protagonizado em nome próprio, me incumbe relatá-lo, mais pelo que pode ilustrar do que propriamente pelo que sucedeu. Ainda recentemente, ao sair de uma farmácia da cidade, e vindo ainda a acomodar os medicamentos no pequeno saco que os guardava, vem disparado na calçada do passeio, sob as arcadas dos prédios e passa mesmo rente à porta uma dessas vertiginosas trotinetas com o respetivo condutor a orientá-la e a uma velocidade de alguém que está cheio de pressa, mas é incapaz de fazer a mínima perspetiva do que pode acontecer (inclusive a si próprio). A trotineta passou como um bólide, eu até presumi que fosse um pequeno asteroide desgovernado desses que passam de milénio a milénio, mas não, porque ainda o pude descortinar no cruzamento a seguir a contornar um poste, a transpor o sinal vermelho (entretanto tinha transitado para a estrada) e seguir o seu rumo. Mesmo sem emissões de carbono, não pude deixar de olhar para ele sem alguma desconfiança. O que eu posso garantir, caros leitores, é que se o caso tivesse ocorrido poucas décimas de segundo depois, não tenho dúvidas que ambos ficaríamos bastante maltratados e prontos para reparar os danos… Para um velocípede que se diz ser tão sustentável e amigo não estou a ver bem como é que é…

O que é certo é que, face à invasão a galope, e até mesmo à intrusão, de centenas de trotinetas nas artérias (todas) do Entroncamento, há que esperar que os órgãos municipais possam (e têm competências para tal) em curto espaço de tempo intervir e estabelecer normas e regras neste setor tão liberal e ecológico, mas com um grau de segurança bastante duvidoso, a que muitas vezes o próprio silêncio em que as trotinetas se movem só ajuda a aumentar. As trotinetas não são nem brinquedos nem para números de circo nem para pistas de Fórmula Um, por vezes com tantos peões a circular em redor. Não é nada que, com normas, civismo, educação, cortesia (termo que desconheço se ainda estará presente no dicionário, pois das ruas e praças já não é avistado há algum tempo) e algumas intervenções nalguns lugares da cidade não se resolva. Et pourtant…

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