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Independentemente do que cada um de nós possa pensar delas, uma coisa é certa, a importância das novas tecnologias e da realidade digital, incluindo nelas o que surgiu no planeta do Homo sapiens sobretudo após o advento dos computadores, da Internet, dos dispositivos de écran, das redes sociais e, mais recentemente, da Inteligência Artificial (IA), é substantiva, dominante e incontornável. Mas não é unívoca, e está muito longe de ser consensual. Conheço pessoas que, fundamentadamente, têm até posições opostas na simpatia ou na aversão que lhes dedicam, indo da devoção quase religiosa a uma oposição praticamente ludita, o que longe de me deixar confuso, desperta um pouco o desejo de ir mais além do que de ficar pelos estereótipos estabelecidos.

Mas se são as novas tecnologias, na miríade das suas manifestações, obedecem aos desígnios do ser humano (se ainda podemos considerar humanos certos seres que já entregaram a alma ao demónio digital e se deixam comandar por uns enigmáticos algoritmos) ou se já são elas que definem o rumo, e somos nós que vamos a reboque, sem qualquer controlo, como um carro sem travões a descer por uma ladeira bastante descaída ⎼ isso já é outra conversa. E este é o nó górdio do debate da presença das novas tecnologias na sociedade e no mundo atual, e também na influência perniciosa que estão a exercer sobre as pessoas, em particular sobre os mais vulneráveis, os jovens que ainda frequentam as escolas, ou nela ainda nem sequer entraram, ou mesmo os jovens adultos millennials ou, com mais abrangência, das gerações Y ou Z. E será este aspeto, bastante sensível sobre o ser humano, que eu gostaria de examinar de uma forma mais próxima e analítica. Há pessoas que põem as novas tecnologias no púlpito dos qualificativos e lhes dedicam uma fé imensa. Mas é uma fé melindrosa…

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Desde a época das novíssimas (e hoje consideradas já primitivíssimas) máquinas de calcular que me apercebi (e qualquer pessoa atenta deve ter chegado à mesma conclusão) que o abuso da prática litúrgica destes magníficos mecanismos tinham o efeito fúnebre de ir fazendo claudicar gradualmente o jeito para o cálculo mental e, a longo prazo, causar mesmo a sua sinistra extinção. Foi um pouco deprimente até ver gente em nada destituída, era até mesmo apta e culta, a recorrer por tudo e por nada aos serviços mágicos de uma texas ou de uma casio, já não falo naturalmente da determinação de uma raiz cúbica ou de um logaritmo qualquer. Mesma para uma operação mais elementar era preciso ir a teclar os dispositivos para obter um resultado que uma simples observação logo oferecia intuitivamente. Dizia-se que se poupava tempo, e isso é verdade, mas também se poupava no córtex, que por isso começou a escassear… E claro que a capacidade de cálculo pessoal foi decaindo e atrofiando cada vez mais à medida que as calculadoras evoluíam e se desenvolviam para as novas versões científicas, gráficas, digitais e outras com recursos cada vez mais plus.

A verdade é que quanto mais plus eram os dispositivos, mais minus, para não dizer ocos, ficavam os cérebros de quem a elas recorria abusivamente e por sistema. Como ficou inscrito no Templo de Delfos, “nada em excesso”, tudo deve ser tomado com moderação. Em termos mecânicos podemos simplificar dizendo que estamos em presença de um puro fenómeno de transferência de capacidades. Se certas aptidões próprias da mente humana existem mas não são exercitadas nem cultivadas pelos seus proprietários, há que os lamentar. Preferiram transferir o esforço (e o exercício) para a máquina e atingir um objetivo de forma mais fácil e com menos cansaço. É uma tentação que se tornou lei, e esta até tem um nome: é a lei do esforço mínimo, consagrada na Antropologia, e seguida como uma religião por muitos jovens (e menos jovens), que nela depositam uma fé inquebrável, insensível mesmo face a qualquer crítica desfavorável que se lhe aponte.

O pior de tudo é que esta lei também se transferiu há uns bastos anos para a gigante e bizarra máquina ministerial que dirige o ensino em Portugal e que, não obstante a ponderação já revelada pelo atual ministro Fernando Alexandre, continua a conspurcar a Educação do país e eiva como erva daninha nas escolas. A máquina comunga, investe e propaga com engenho (e protegida pelos decretos pontifícios desta congregação eclesiástica publicada no DR) este apoio ao facilitismo e aos seus efeitos nefandos − que o bom senso prevê e o princípio das consequências naturais já antecipa. De resto, a saga facilitista começou há muito, talvez desde a abominação secular do papel da memória e das suas funções, como se ela não fosse uma parte essencial da nossa identidade e da cultura a que pertencemos (que se baseia numa acúmulo fértil de memórias), até à prática escolar mais recente de acabar com os trabalhos de casa.

Hoje, nestes longos dias de uma canícula que já anuncia o que é muito provável que sejam os longos verões futuros, e numa esplanada mais aprazível, uma mesa ao lado povoada por seguidores desta seita (e provavelmente as maiores vítimas do seu credo) dá mostras fartas do seu mundo. Passando adiante sobre o rico vernáculo, mas impublicável (de “orvalhos” e “óscares” a afins…), que decora profusamente o seu escasso glossário, e onde o delas (que compensam esta abundância no asneirário com a escassez no vestuário) consegue suplantar o dos mancebos, todo o auditório em torno fica a conhecer à força alguns dos seus detalhes existenciais mais reveladores. Peixes não comem porque têm espinhas, nêsperas nem tocar-lhes porque há coroços, uvas só das variedades sem grainhas (que já terão sido geneticamente modificadas para agradar a suas excelências), quanto à carne tem de ser desossada, se não, nada feito. Até ao décimo ano os pais (ou até os pobres avós) tiveram de tirar ao descanso para levar de carro a pobre criatura até à escola a 400 metros de casa. Desenvolveram, portanto, uma enorme autonomia. Na leitura cansam-se depressa, a escrita há de ser para o dia seguinte, são adversos e reagem mal a qualquer contrariedade, e pior ainda se algum tipo de contratempo persiste mais de cinco minutos, o que os obriga quase compulsivamente a recorrer à caixinha calmante dos xanaxes ou dos cipralexes, o que contribuiu para tornar Portugal num dos primeiros países (da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) no consumo per capita de substâncias deste género. Amigos verdadeiros só têm um – o seu computador pessoal com as aplicações e serviços anexos – e há um flirt recente que já não dispensem e sem o qual, suspeito eu, já não sobreviveriam, a IA.

Destituídos de quaisquer virtudes específicas, assumem a platitude existencial como uma forma de vida. Quando entram num comboio, tratam de imediato em tornar-se invisíveis aos demais, uma pala do boné sobre a testa e até ao nariz, óculos escuros para encovar o olhar, auscultadores grandiosos nos ouvidos e de smartphone em punho até ao fim da viagem num recanto da carruagem, o contacto humano é-lhes bastante difícil e cada vez o será mais. Hiperativos, só mesmo no dedilhar profícuo e nervoso das teclas dos queridos écrans táteis ou no teclado quase gasto do computador, perante os quais só não fletem os joelhos por ser impróprio ou isso dar muito trabalho.

Pobres criaturas. Caminham mecanicamente, quase não falam, tornaram-se insensíveis a tudo o que na realidade os rodeia e incensam mundos imaginários, e tornaram a vida num rascunho pensando que será deles o reino de Deus. E somos todos nós, os mais velhos, os pais e os avós, os professores e amigos mais experientes, e essa fauna de inimputáveis políticos e legisladores compulsivos que legislam sobre o que nada entendem a reboque de modas, os principais responsáveis do estado a que isto chegou, e do que mais se verá…

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