O fim do ano costuma ser tempo de balanço, mas o único balanço que conheço é o balanço suave do corpo, a oscilar para a frente e para trás diante da lareira. O calor acaricia-me a face e eu suspiro de prazer, confortada. Que me interessa o futuro? A memória do frio que conheci no passado está nos meus ossos como uma película que cobre todo o esqueleto, de cima a baixo, e que ressurge a cada inverno.
Certa vez ouvi num documentário uma sobrevivente de Auschwitz contar que, desse tempo infernal, lhe ficou até hoje a memória do frio que passou e que ela não consegue superar. Desde então, e tantos anos decorridos, a cada Inverno ela a sair de casa e a comprar compulsivamente casacos e mais casacos, como se pudesse agasalhar hoje a menina que enregelou no campo de concentração. Possui tantos casacos que não os consegue fazer caber dentro dos armários de sua casa, pelo que os vai doando regularmente para a caridade.
Eu, num certo sentido, igual a essa sobrevivente do Holocausto, porque vive em mim um frio que não desaparece, e que se aquieta apenas diante do fogo. Vivi na rua vários anos. Foi na adolescência ainda, com um namorado que então tive, que me perdi pelos meandros da má vida. O meu pai dizia nessa altura pelos botequins do bairro, para quem o quisesse ouvir, que preferia que lhe tirassem as duas pernas com uma serra eléctrica a ter um uma filha drogada, pelo que acabei institucionalizada. Passei por várias instituições, e nalgumas, em vez de me protegerem, maltrataram-me de toda a maneira. No fim, achei-me, não reabilitada, mas quebrada, como a chávena de porcelana que a falta de cuidado deixa cair ao chão, resultando no quebrar da asa. Continuava a ser uma chávena, isto é uma mulher, mas sem asa por onde pudesse ser agarrada, defeituosa, uma sem-abrigo da vida.
Hoje compreendo que, para me regenerar, seria preciso que surgisse algo que não havia ainda, e que era um bem que não se encontra no mundo com facilidade. Alguém capaz de penetrar com os olhos o meu interior, como a Blimunda Sete-Luas do Memorial do convento do Saramago, que tinha o dom de ver os corpos por dentro, em estando de estômago vazio. Foi preciso um dia, depois de mais de mil noites a dormir numa cama de jornais, que aparecesse um homem que visse para lá do sebo que me cobria a pele como uma máscara de entrudo. Eu a parecer mulher morena, quando na verdade, debaixo da sujidade, eu de uma brancura de princesa de conto de fadas. A minha mãe chamava-me mesmo Branca de Neve, às vezes de brincadeira. Morreu, tinha eu dez anos, atropelada numa passadeira quando vinha do talho com uma galinha para me fazer uma canja, lutava eu por esses dias com uma gripe apanhada na escola.
Ora esse homem que, por favor divino, apareceu no meu caminho era vendedor ambulante de castanhas. Numa manhã de céu encoberto, estava eu por acaso sentada nas escadas da igreja, de barriga colada às costas, quando o perfume da castanha assada me fez erguer e seguir, um pé atrás do outro, esse cheiro que me entrava pelo nariz como o fumo de um encantamento.
Em poucos minutos vi-me defronte dele e, habituada que estava a pedir pelas ruas, mendiguei-lhe a graça de uma castanha. Só uma, por amor de Deus, roguei. E ele, para meu espanto, ofereceu-me uma mão cheia delas, num cone de folha de jornal. Agradeci, e voltei para a escada da igreja, a deliciar-me com aquele alimento que, de tão bem que me soube, me pareceu mais santo do que a hóstia sagrada, porque, tomando essa, o homem apenas come o simbolismo que, sabe-o quem já passou fome, não enche a barriga de nenhum pobre.
Depois desse dia, ele a parar diante da igreja muitas vezes, onde eu dei em estar todas as manhãs, na esperança de o ver passar. No entanto, sem saber porquê, eu de repente envergonhada, e sem me atrever nunca mais pedir-lhe castanha nenhuma, mirando-o só de longe, sem coragem para me aproximar. Até que duas semanas mais tarde, ele a dirigir-se à escada da igreja, a subir os primeiros degraus, e em chegando mais ou menos a meio, onde eu me encontrava, sentada de joelhos contra o peito para cortar a ferradela do frio, ele a estender-me um cartuxo de castanhas. Eu então, apesar da vergonha, não me fiz de rogada e agarrei logo mais essa dádiva que, novamente, me soube como se fora o santo corpo do Senhor.
Depois disso fui-lhe ganhando simpatia, e aceitando a cada vez as castanhas assadas que ele continuava a oferecer-me. Começámos a conversar, e em pouco tempo partilhávamos um com o outro as nossas histórias. Contei-lhe da sopa e do pão que me serviam umas pessoas de boa vontade, que chegavam numa carrinha todas as noites, ceia que se juntava no interior do meu estômago às suas benditas castanhas. Ele falava comigo como se não visse o sarro, e tendo aprendido o meu nome, repetia-o muitas vezes, ora no começo das frases, ora no meio, como se fosse, o meu nome, palavra de muito respeito. Esses seus modos, de uma gentileza muito humana, ressoavam fundo no meu coração, e a expectativa de trocarmos a cada dia dois dedos de conversa acabou por dar um sentido para o meu vaguear, a parecer uma âncora que me salvasse de um desnorte sem fim.
Hoje a vida apresenta-se muito modificada. Eu larguei o vício da droga em definitivo e trabalho num café, ele faz entregas numa firma de mudanças, e ao fim de cada dia cá nos encontramos na nossa casinha, abrigados os dois debaixo do mesmo tecto. No mês de Novembro vamos juntos ao fim-de-semana para a rua mais o carrinho das castanhas, e se calha toparmos com um mendigo, damos-lhe um cartuxo delas, quentinhas. Não faço planos para o futuro, apenas vou vivendo o dia-a-dia, agradecida pela bênção que recebi do destino, depois do tanto que sofri. E a cada Inverno, à noitinha, quando o frio me acorda nos ossos a recordação do passado, eu chego-me mais à lareira e murmuro para mim mesma, enquanto me balanço diante do fogo, já passou, já passou.






















