A infâmia de se fazer uso do nome de crianças para propósitos de guerrilha xenófoba, como fez o grupo de malfeitores que dá pelo nome de partido Chega, recorda-me o tempo em que eu própria fui uma criança com um nome diferente. E se na França, onde nasci, cheguei a ser discriminada por ser portuguesa, apesar do nome francês com que fui baptizada, a verdade é que quando cheguei a Portugal, embora tivesse sangue português, fui apontada por ser francesa.

Os meus pais, que julgavam que não regressariam a Portugal, chamaram-me Evelyne, mas como a vida se ri frequentemente dos planos que fazemos, acabaram mesmo por voltar, e cedo descobriram que me tinham escolhido um nome pelos vistos inaceitável por cá naquela época, pois as autoridades portuguesas decidiram que eu me passaria a chamar Adelina, que foi o que lhes ocorreu de mais parecido. E assim, nos primeiros tempos em Portugal, onde cheguei aos seis anos, fui oficialmente Adelina, para meu desgosto.

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Passado o penoso primeiro ano, em que entrei para a escola sem falar português, após muitas voltas burocráticas, de Adelina passei a Evelina, nome que rejeitei também durante muito tempo. Durante anos, nas primeiras aulas apresentava-me como Eveline, concedendo perder o y mas sem abdicar do e no fim, o que causava confusão aos professores, que me respondiam que o nome na pauta era Evelina, com a, o que me levava sempre a desfiar a história evolutiva do meu nome, que, repetida tantas vezes, fazia sorrir os meus colegas.

Há meses reli, e com grande prazer, “Os Maias”, de que aliás me lembro de ter gostado, logo na escola, quando conheci o romance, apesar de aos dezasseis anos me ter escapado muita coisa, nomeadamente do erotismo entre Carlos e Maria Eduarda. Fui dar com a edição que guardo desse tempo com Eveline escrito por todo o lado, com a primeira página, a de rosto, absolutamente toda preenchida, numa caligrafia grande a redonda, com EvelineEvelineEveline a esferográfica cor-de-rosa, de cima a baixo.

O facto de escrever tantas vezes o nome levara já antes a professora de português do 8.º ano a sugerir que procurasse ajuda profissional, para perceber o motivo por trás dessa atitude. Conselho a que não dei nenhuma atenção, por saber que insistia em afirmar o meu nome por este me ter sido negado.

Tem graça como às vezes, sobretudo quando somos muito novos, se é combativo sem uma causa que realmente o justifique. Tempos depois, já no 10.º ano, outra professora de português anunciou certa vez que a composição que eu fizera deveria ser afixada no átrio da escola, para ser lida por todos, professores e alunos. Tratava-se de um texto feminista em que se apelava de maneira infantil à união das mulheres de todo o mundo contra os desmandos masculinos. Essa minha professora de português calhava ser casada com um professor de filosofia que mandava frequentemente as alunas saírem da sala de aula, por cinco ou dez minutos, para contar aos rapazes anedotas picantes e fazer comentários aos anúncios televisivos do gel duche da marca “Fa”, em que surgia uma mulher despida a tomar banho numa ilha tropical, que apelava para o seu imaginário sensual.

Não sei ao certo que idade teria quando aceitei finalmente ser Evelina, talvez andasse já pelos dezoito. Era uma causa que afinal não merecia tanto combate. Já o feminismo, merecia então e merece hoje, muito especialmente agora em que se verifica uma forte pulsão para o retrocesso.

Mas se há causa que deve mesmo convocar-nos para a luta, é a defesa intransigente da dignidade das crianças, que, goste-se ou não do nome delas, ou dos pais que seja, não podem ver-se arrastadas para o lodo que sai da boca de certos deputados da nação, que clamam defender os portugueses, mas que se limitam, muito ruidosamente, a propalar mentiras, sem apresentarem nenhumas soluções para os problemas reais que os portugueses enfrentam.

Afinal o que interessa o nome de cada um? Mais interessa o que se faz com o nome que se tem. E o que fazem, Rita Matias e André Ventura, com muita gritaria e gesticular à mistura, é encarnarem o papel de vilões infames.

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