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Duas pessoas que se não vêem há dez anos marcam encontro, algures numa cidade portuguesa, dessas que não são grandes nem pequenas e onde a vida decorre sem sobressaltos. Estamos em meados de Dezembro. O azul do céu nessa manhã é tão vivo que uma nota de alegria ressoa no coração de quem anda, pelo labirinto das ruas decoradas, na azáfama das compras de Natal, e de cujas bocas se vão soltando pequenas nuvens brancas. O circo chegou à cidade entretanto, a colossal tenda já se encontra montada, coroada de bandeirolas, e por todo o lado cartazes festivos anunciam as datas dos espectáculos.

Eu disse que estas duas pessoas não se vêem há dez anos, mas na verdade elas nunca se viram. Digamos que se conhecem sem se conhecerem, e onde eu disse dez anos leiam oito. Temos por vezes a tendência para arredondar, mas nem sempre o redondo serve melhor a história que se quer contar. Recapitulando, temos numa manhã fria e bela de Dezembro duas pessoas que se conhecem há oito anos e que nunca se encontraram. Não sei se perceberam já, mas estamos perante uma história de amor.

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Os dois combinam encontrar-se na praça, onde desaguam as ruas da cidade velha, diante da grande árvore de Natal, decorada com bolas coloridas e que à noite parece um archote ateado. Ela vem descendo a pé, vindo da parte alta. Observemo-la por um instante. Terá talvez passado dois ou três anos dos quarenta, nem alta nem baixa. Não chama a atenção o passo elástico de quem sabe para onde vai. O que poderia chamar a atenção é a circunstância de o seu braço esquerdo ser muito mais pequeno que o direito, deformidade congénita que toda a vida aprendeu a disfarçar com arte, ora escondendo o braço atrás das costas, ora pondo a mão dentro do bolso do casaco, para evitar que o membro mirrado fique pendurado ao lado do tronco, a parecer um peixe fisgado a balouçar no anzol.

Cruzam-se online, num chat de encontros, na altura em que estes começam a estar muito na moda, astúcia que permite à mulher namorar, ocultando que tem um par de braços desirmanados. Gostam um do outro logo à primeira troca de frases, mas ela esquiva-se a marcar um encontro. Por vezes passam semanas silenciosos, como se não tivessem nada para dizer, mas nem por isso deixam de sentir a companhia do outro dentro dos dias. Depois, de repente, retomam o diálogo no ponto onde o haviam interrompido, com toda a naturalidade.

Sempre de malas feitas, ela dá a volta ao mundo em trabalho, por conta da agência de viagens em que é consultora. E com isto os anos vão correndo, surgem os primeiros cabelos brancos, as rugas debaixo dos olhos, e a mulher do braço pequeno, de tanto falar com o homem que nunca viu, quase se esquece às vezes da sua pequena diferença, diferença que ele, por ignorá-la, não vê, e que ela em consequência vê cada vez menos. A partir de certa altura ela começa a dizer para si mesma que o braço pequeno pode tanto como o outro, mesmo alcançando apenas a linha da cintura, em vez de se prolongar, esguio, até a meio da coxa. Afinal, tal qual o direito, o braço esquerdo respira e vive, tendo, como os outros braços do mundo, uma mão absolutamente funcional na extremidade.

Quem vê braços, não vê corações, e assim sendo quem a vê passar nessa manhã não imagina que a mulher do braço pequeno guarda um segredo, um amor cozinhado com vagar, que foi crescendo até se tornar no que é hoje, um facho capaz de iluminar a mais larga artéria da cidade. Quase como a árvore no centro da praça, que se acende a cada noite durante a quadra natalícia, ela assim, uma árvore de Natal com pernas e braços a caminhar pelas ruas, insuspeita.

Há nas cidades uma luz que não vem da electricidade, mas que nasce das pessoas, e que a maioria de nós não nota, embalados que andamos pelo vai e vem do deve e haver rotineiro, que tende a fechar o destino dentro de uma caixa pequena. Por exemplo uma daquelas caixas em que a bela mulher se vê deitada, para ter a seguir os membros amputados pelo serrote a fingir do mágico. No entanto, a mulher do braço pequeno a descobrir que a vida não é a caixa em que a assistente do mágico se deita, mas sim a gigantesca tenda de lona às riscas, em que cabe o mágico e a assistente, mais o trapezista, o palhaço, o malabarista, o homem que cospe fogo, o contorcionista, o domador de leões, e ainda o ginasta que se equilibra ao alto na corda bamba, num arrebatador jogo de luzes em que a música e as cores convidam à aventura, e em que não falta também o anão, o gigante, a mulher barbuda, o homem elefante, e até, porque não?, a mulher do braço pequeno. No circo da vida pode ser Natal todos os dias e para todas as pessoas. Com esta descoberta, que lhe leva bastante tempo a realizar, ela ganha coragem, e um dia decide-se a convidar o homem que nunca viu para uma visita à cidade, não aceitando as desculpas frouxas que ele ensaia de início, aturdido com a novidade.

Ela vem chegando agora à praça, e se olhos houvesse em volta capazes de ver o invisível, pasmariam face ao esplendor da luz que lhe dança no peito. Imobiliza-se por uns segundos, ao deslindar de longe a figura dele, postado expectante ao lado da árvore de Natal. Talvez ele pressinta que a mulher do braço pequeno se vem aproximando, porque subitamente ele vira o rosto na sua direcção, e um sorriso de alegria desenha-se-lhe nos lábios.

Corada do frio e do nervosismo, ela chega finalmente ao lugar onde ele aguarda, com os últimos passos a saírem-lhe um pouco trôpegos do embaraço. Encontram-se os dois, enfim, frente a frente. Ela mantém, defensivamente, as mãos nos bolsos do casaco, comprido e quente. Mas ele estende-lhe os braços, a querer apertar nas suas as mãos dela, com que vem sonhando pelos anos. Eis que é chegado o momento da verdade.

Infelizmente é chegada também a hora de partirmos. Deixemo-los sós e não os incomodemos com a nossa presença, fazendo votos para que passem um santo Natal.

Mais tarde, quando estiverem a almoçar, já algo bebidos, ele vai confessar-lhe que tem uma perna de pau.

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