Agora que já não tenho crianças, e que os meus filhos são homens, dou por mim muitas vezes a rever o diário que fiz desses anos, e francamente surpreende-me que tenha sobrevivido. Para os que neste momento abanam a cabeça diante de tamanho dramatismo – afinal todos os dias as mulheres têm filhos, o que tem isso de especial? – deixem que vos diga que a maternidade para mim foi uma experiência radical.
Não se passou um dia só em que eu não pensasse que estava a fazer tudo mal. Ao fim e ao cabo, o que é uma boa mãe? Convenhamos que os elogios vão muito mais facilmente para o pai – que o mais das vezes só por comparecer se vê logo coroado com o prémio de grande pai – do que para aquela que normalmente suporta a maior parte da carga. Uma grande mãe, para a maioria, tem de ser um exemplo de abnegação e de renúncia, sobretudo se tivermos em conta que em Portugal a maternidade resulta bastante sacrificial. A mãe por cá é a educadora, a disciplinadora, a tutora, a administrativa, a contabilista, a governanta, a cozinheira, a mulher-a-dias, a patroa e a criada. Ufa! Não é de admirar, pois, que as mulheres de hoje não se sintam muito tentadas a pôr filhos no mundo, para mais se tivermos em conta a diminuição da qualidade de vida e o estado do SNS.
No entanto, se alguma jovem me perguntasse se acho boa ideia ter um filho, eu diria que sim, absolutamente sim. Mas esqueçam a tradição da exemplar mãezinha supermulher, suprassumo da doçura e da força ao mesmo tempo, que tem nos filhos a razão da sua existência e o motivo para respirar, que isso não passa de uma quimera que coloca a fasquia de tal maneira alta, que mulher nenhuma a pode jamais alcançar. E digo mais, não pode, nem deve. A mãe é um indivíduo, alguém que já existia antes de mandar vir os filhos, e que continuará a existir após estes abandonarem o ninho.
A mãe perfeita é como o unicórnio, palavra que nos últimos anos tem sido muito usada no contexto do empreendedorismo e das startups, mas que diz respeito a uma criatura mitológica que simboliza e força e a pureza e que bem gostaríamos que existisse, mas que só vive nos filmes de animação e no mundo da fantasia. No mundo real o mais parecido que temos são os cavalos, de que gostamos aliás muitíssimo, especialmente no Ribatejo, e que no fundo são os unicórnios possíveis, embora sem o bendito corno na testa. Os cavalos de resto têm sobre os unicórnios, para lá da vantagem evidente de existirem mesmo, aquela outra que dá também muito jeito que é deixarem-se montar.
Lembro-me a propósito de um livro que os meus filhos gostavam muito que eu lhes lesse, do José Jorge Letria, com ilustrações de André Letria, que se chamava Animais fantásticos, que depois de passar em verso pelo Ciclope, pela Esfinge, pela Fénix, pelo Pégaso e por várias outras maravilhosas criaturas, termina justamente com o Unicórnio, cujo poema finda assim: «Na cerrada floresta / é que gosto de viver, / entre pétalas e estrelas / à luz do alvorecer.»
Só vendo a coisa muito poeticamente se pode julgar que a maternidade é flores e estrelas e brilhos do alvorecer, e alturas há em que se faz mesmo noite escura. Creio que a mãe que fui para as crianças que tive está bem representada na cena que descrevo a seguir, e que gostaria de dizer que teve lugar sob circunstâncias excepcionais, mas que na verdade se passou num dia quase banal. Certa noite em que eu estava muito cansada, fiz para o jantar uma salada fria de batata, com ovo cozido, atum, pimentos, milho, etc. A cozinha da nossa casa não era grande, mas do caminho da bancada, onde acabei de picar a salsa para a salada, até à mesa, onde os meus filhos aguardavam de talheres em riste, teriam eles talvez cinco e sete anos, algo de muito estranho aconteceu. A salada de batata estava numa grande taça de louça branca, e quando eu segurei a taça e me virei para eles, no segundo antes de encetar os três ou quatro passos que me separavam da mesa, ocorreu-me que poderia muito bem atirar a taça ao ar, com salada e tudo, e simplesmente desaparecer. Claro que comecei por resistir a ideia tão desvairada, mas às vezes na vida três ou quatro passos podem parecer uma maratona, e acontece que ao segundo passo, infelizmente, a ideia ganhou uma força tal que eu, de facto, ergui os braços para o alto e atirei o jantar das minhas crias ares fora. O resultado, claro, foi a taça feita em mil pedaços no ladrilho e comida espalhada por todo o lado. Mas não desapareci. E como pensam que os meus filhos reagiram? Levantaram-se imediatamente das cadeiras e juntaram-se a mim no chão, os três de cócaras a apanhar os cacos. As lágrimas corriam-me pelo rosto, mal podendo acreditar no que acabara de fazer, mas eles, muito serenos, a passarem as mãos pelos meus cabelos e a repetirem, mamã, não chores, nós ajudamos.
E assim foi, eles foram ajudando através dos anos, e, entre mortos e feridos, como se costuma dizer, as minhas crianças deixaram de o ser. Vocação para a maternidade? Não sei, possivelmente não tenho nenhuma. Mas o amor é um grande professor.






















