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Comecei por conhecer o António Miguel na turbulência dos anos que se sucederam à revolução do 25 de Abril, com muitas polémicas, casos e equívocos mais ou menos de natureza política e com as tonalidades exacerbadas que atingiriam o pináculo do êxtase revolucionário no verão de 1975, há portanto cinco décadas, mas que se prolongariam ainda durante uns anos, até a revolução e as ilusões que ela criou, como todas, sucumbir em cinzas, e se volatilizar no éter das utopias e pousar na normalidade. Havia nessa altura uma tertúlia incansável no Café Monumental, um café clássico, à antiga, com a sua majestade e os seus clientes habituais, uns para jogar bilhar num piso ligeiramente inferior, outros para as damas numas mesas aos cantos, a nossa era mais ou menos a meio da sala, ia engrossando depois do almoço para o debate permanente das grandes ideologias da época e das pequenas tricas do dia ou de vésperas, que ainda ressoassem. Todos nós tínhamos convertido o Monumental num habitat comum e inevitável. O Miguel, com pouco mais de 17 ou 18 anos, era então um militante fervoroso das ideias maoistas e das que fossem capazes de pôr radicalmente o mundo ao avesso e dissipar do mapa a sociedade salazarenta com que tínhamos sido brindados desde que nos lembrávamos de ser gente. E se era preciso mudar a sociedade, então havia que a mudar para um mundo que valesse a pena, um mundo realmente livre, igualitário e fraterno, um mundo sem sobas nem escravos, um mundo que podia ser utópico mas que, na espuma daquele tempo de idealismos e com a leveza da idade, que nos permitia levantar voos, pois havia pouco lastro na carlinga, éramos capazes das ideias mais exorbitantes sem que isso nos pudesse envergonhar, antes pelo contrário.

A ideia social que tínhamos era praticamente igual, mas quanto aos caminhos para lá chegarmos, isso já eram coisas muito diferentes. Claro que éramos todos de esquerda, e quanto mais radicalmente à esquerda mais prestigiado seria o estatuto e respeitado o respetivo militante. E havia também aquele curioso narcisismo da pequena diferença, que hoje distingue as seitas por ínfimos detalhes, tornando-as inimigas, e na altura originava acesas discussões todas em defesa e em prol da classe operária, apesar de nenhum de nós ser membro dela, nem fazer grande ideia das suas amarguras. Uns eram socialistas, a maioria era adepta dos partidos chamados maoistas, marxistas, leninistas, trotskistas, cada ismo à sua vez, outros com o talento de seguir e soletrar todos os catecismos ao mesmo templo, havia também os do PCP (habitualmente alvos de algum desdém dos ultras), um ou outro anarquista sem grande relevância, outros ainda que oscilavam como cata-ventos de acordo com as marés do país e os argumentos esgrimidos na arena do lendário Café Monumental. Os mais aguerridos de todos nós eram, não tenho dúvidas, os tipos do MRPP, cidadãos inflexíveis, de verbo fino e cheios de ética e pose aristocrata, eram os seguidores de Arnaldo de Matos, o guru “grande educador da classe operária”, eram a elite da revolução, e o Miguel era um deles, um dos principais. Era preciso chegar a este ponto e ao ambiente político e social no país de há 50 anos para eu ter agora uma base sustentável e poder falar com mais fundamento do Miguel.

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Alguns anos depois, já poucos destes gladiadores de argumentos imbatíveis nas discussões em torno de Karl Marx, Mao Zedong, Pierre-Joseph Proudhon, Bakunine, Karl Popper ou Rosa Luxemburgo, permaneciam no mesmo ponto cardeal, uns haviam mudado (e muito), outros já haviam desertado das arenas e refugiado atrás de algum callejón para não levar umas marradas. Aqui, a postura do António Miguel fez-me sempre admirá-lo, não tanto pela natureza da ideologia que perfilhava, e manteve até ao fim, mesmo quando a saúde o abandonou. Permaneceu leal ao seu movimento, e quanto menos eleitores o MRPP tinha nas urnas, maior a crença que lhe devotava, e isto sem nunca procurar lugares, cargos, chefias e, muitíssimo menos, prebendas ou alguma mordomia. Também nunca foi proselitista para esta sua sua causa ou para causa alguma. De resto, também a sua paixão ao glorioso Benfica seria a outra das marcas do seu carácter arreigado, a que emprestava um humor proporcional às circunstâncias e sem nunca se aproximar de qualquer exagero destemperado. De resto, os nossos clubes, que eram diferentes, serviram com frequência para princípios de conversa, onde aproveitávamos para trocar alguns galhardetes e rir a bom rir no fim…Nunca nada em excesso, sabia relativizar, era um gentleman tranquilo, quase sempre otimista, mesmo nos males que o começavam a afetar, até o atirarem para uma cadeira de rodas nos últimos anos. Por vezes, estas duas paixões eram mesmo um protextos para uma sã convivialidade com os amigos em torno de uma ou duas cervejas (nada em excesso) ⎼ que eram outra devoção ⎼ com os amigos numa mesa do café ou de uma esplanada de verão.

A família ⎼ a Professora Gabriela e os filhos, o Pedro e a Patrícia, brilhantes alunos, e mais recentemente, a Sofia, a nora que ele adorava ⎼ era o mais nobre dos seus nortes, tivera também a sua profissão de bancário, competente, dinâmico e respeitado, com algumas iniciativas empresariais, mas o que completaria o tripé básico da sua razão de ser foi mesmo o jornalismo, missão a que se dedicou com denodo e terá sido decerto aquela em que melhor se soube revelar o que de melhor tinha como um grande ser humano com valores e preocupações com os outros: generosidade, estoicismo, voluntarismo e uma incrível vontade de ajudar, tudo alicerçado numa energia e numa capacidade de iniciativa insuperáveis. Ao seu espírito fundador se devem sucessivamente, e sem qualquer favor, a Revista Nova (uma aventura breve no início da década de 1980), o Notícias do Entroncamento (NE, 1984-2017) e, surgido já no início deste milénio, pressentindo que o futuro dos jornais em papel já claudicava, e apostando numa versão eletrónica, surpreende com o Entroncamentoonline (EOL), que conduziria até ao ano passado, quando já não podia mais e as forças não chegavam para domar os males que o afetavam. Em todos estes órgãos colaborei com o Miguel, na revista e no NE, colidimos fartas vezes, tanto fruto das idades irrequietas, como dos conceitos e da liberdade que imperava, e isso deixa-me à vontade para dizer hoje o que dele sempre pensei, e porque a parte da amizade nunca foi ensombrada: era um homem inteligente, leal, sem ressentimentos, com um jovial espírito de ironia sempre pronto, e respeitador mesmo de pontos de vista opostos ao seu, era um democrata em pleno que amava o Entroncamento para onde veio aos 12 anos, e um jornalista no sentido mais generoso do termo. Se acreditarmos que há algo mais naquele país estranho que nos acolhe como cidadãos depois da morte, não tenho dúvidas de que ele já lá está a arquitetar neste momento um novo meio de comunicação, com os outros amigos daqui que já lá tem e com outros, bons, que vier a conhecer…

O nosso amigo António Miguel Silva nasceu em Vila Franca de Xira em 1957, faria no próximo dia 1 de agosto 68 anos. Estudou primeiro no Liceu Gil Vicente, em Lisboa, e depois no Liceu de Tomar, após o pai vir para o novíssimo Centro de Formação da CP no Entroncamento. Sendo bancário, ainda arranjava tempo e energia para outras iniciativas que se deveram ao seu impulso, e que a esposa lhe recordava há pouco tempo para o confortar: “Miguel, estás triste, mas não estejas… Tu fizeste tanto!” E a Gabriela enumera agora algumas das suas iniciativas: “Foi a Revista Nova, o Notícias do Entroncamento, o EOL ⎼ ‘EOL’ foi uma das últimas palavras que pronunciou, já um pouco mal articulada por causa da doença ⎼, mas também as suas iniciativas com a Discoteca Galáxia, o restaurante Anabar, o Anabembombar, os concursos de dança… No fundo, ele era um empreendedor, gostava de começar algo de novo”. E também era um otimista, raramente se lastimava, ia à fisioterapia nestes últimos dois anos e brincava com alguns ditos com as fisioterapeutas, que também retribuíam, a par de o terem também recuperado até onde podiam.

Ultimamente, já hospitalizado, a Gabriela perguntava-lhe: “Miguel, estás bem?!”. O Miguel sorria-lhe, tranquilo, como sempre: “Estou, estou, Gabriela, vou para Belém!…”

Descansa em paz, amigo Miguel!

 

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