O apagão não avisou. Apenas aconteceu. Como tudo o que realmente importa. De repente, tudo o que nos protegia: o ruído, o conforto, a pressa… Caiu por terra. Ficámos nus, sem os adereços que nos distraem daquilo que somos quando não estamos a fingir.
No escuro, não somos rostos. Não somos cargos. Não somos sequer histórias bem contadas. No escuro, somos mãos a tatear, respirações presas, corações a bater forte, traindo tudo aquilo que tentamos esconder de nós próprios.
As lâmpadas calaram-se. A eletricidade deixou-nos a sós com aquilo que realmente transportamos: perguntas não feitas, abraços adiados, versões de nós que deixámos esquecidas nos corredores da pressa. No escuro, o verniz estala, o sorriso treinado desfaz-se, e, no meio desse caos silencioso, talvez aconteça o milagre: vermos, pela primeira vez, aquilo que sempre esteve lá.
Não são os olhos que guiam. É o instinto. É a memória de quem já caiu antes e sabe, sem pensar, como se levanta.
Sobrevivemos. Sobrevivemos ao que é pequeno e parece enorme. Sobrevivemos ao vazio. Sobrevivemos, até, a nós mesmos, o que, às vezes, é a mais difícil das batalhas. Mas fica a pergunta: e se o apagão for de dentro? E se a luz que falta for a nossa? Como se reacende um peito apagado? Como se encontra o caminho, quando já não sabemos o que é norte?
Talvez seja preciso reaprender o gesto mais primitivo de todos: tatear no escuro, tropeçar sem vergonha, soprar para dentro até uma faísca tímida voltar a crescer. Não precisamos de ver o caminho todo. Não precisamos sequer de vê-lo. Basta confiar naquilo que ainda bate. Mesmo em silêncio. Mesmo em queda. Precisamos sim, de ser casa para o nosso próprio escuro. Confiar que somos feitos de uma matéria que sabe, mesmo às cegas, o rumo de volta para casa.
Afinal, um apagão é isso mesmo: acender-se por dentro, mesmo quando o mundo inteiro parece ter-se apagado.
SANDRA MAY
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