
Este pequeno artigo foi originalmente escrito e publicado em 2012. A razão pela qual agora se repristina fica ao cuidado do prezado leitor, da sua proverbial paciência no confinamento doméstico e à jubilosa esperança de que, aquilo que se escrevia há quase um decénio atrás, não se revista agora do sabor agridoce de alguma profecia desta espécie de velho do Restelo. Ei-lo:
“a esta nova geração tecnocrática – que sucede a tantas outras e que parecem perpetuar-se historicamente – põe-se a questão de defender, como ponto de honra, que os princípios são muito bonitos e muito necessários, mas apenas se houver dinheiro para os pagar. A finança torna-se, deste modo, centrípeta e passa a encerrar fins em si mesma, e já não se situa já num plano meramente instrumental e ao serviço do desenvolvimento da Condição Humana.” (in Hannah Arendt (1958), A Condição Humana).

Neste pequeno texto irão cruzar-se algumas cenas que constam do nosso imaginário colectivo: assistiremos a verdes prados onde pastam alegres cordeirinhos, acompanhados de uma inocente e doce criancinha e que entre eles se encontra entretida a brincar. Nada de mais bucólico e ternurento é possível imaginar.
Infelizmente, como estes cordeirinhos não são para nos ajudar a dormir e considerando o facto de a criancinha viver no mundo real somos forçados a desfazer o suave sonho que se antevia, mesmo antes de ele começar. Afinal, nesta história que se segue, os cordeiros têm donos (muito egoístas, por sinal) e a tal criancinha passa fome no seu estômago e no seu coração.
Mas, vamos por partes. Era uma vez, umas boas dezenas de anos atrás, um brilhante cientista britânico que se dedicou a desenvolver uma teoria muito interessante e a que foi dado o nome de “Tragédia dos Comuns”. Sendo um exercício de matemática aplicada (que faz parte da chamada Teoria dos Jogos), o investigador começou por observar o comportamento de um conjunto de proprietários de gado ovino em determinado local de Inglaterra. Nesse espaço, existia um terreno de pasto comunitário particularmente adequado para alimentação do gado e que se contrapunha à relativa exiguidade de recursos dos terrenos privados dos ovinicultores. Punha-se a questão de saber se, tendo os proprietários direitos iguais (por isso “comuns”), como proceder à exploração do terreno comunitário sem que a sobre utilização o esgotasse rapidamente (a presumível “tragédia”).
A teorização do modelo encontrada foi, no mínimo, surpreendente. Eis o enunciado: “cada vizinho tem aqui a tentação T de beneficiar dos pastos sem pagar o custo; a recompensa R pela cooperação mútua consiste em negociar quantos hão-de deixar de beneficiar dos pastos comunitários para os conservar em boas condições; o castigo C é para todos, quando cada um cede à tentação, e é a ruína dos pastos; a perda P é a de que ao não se aproveitar dos pastos comunitários, se permita que outros o venham a fazer. Estas possibilidades combinam-se como no dilema do prisioneiro bipessoal, fazendo que perante o risco de receber P, a paga do ingénuo, todos cedam à tentação de não cooperar e provoquem a situação de castigo” (cf. Wikipédia, na Entrada “Dilema do Prisioneiro”, acedida em 17.10.2012).
Ou seja, matematicamente falando, a melhor solução é a de TODOS utilizarem o terreno comunitário, mesmo perante a perspectiva do seu esgotamento…
Um dia destes, que não o de hoje, talvez aqui se escreva sobre outros corolários singulares e engraçados dessa mesma Teoria dos Jogos, tal como o tal Dilema do Prisioneiro ou o Equilíbrio de Nash e a razão pela qual tiveram uma contribuição tão significativa para evitar – por exemplo – que fossemos todos esturricados por um holocausto nuclear, do tipo III Guerra Mundial. No entretanto, para quem goste, aproveite para (re)ver o filme “Uma Mente Brilhante”, pois tem uma ligação directa com a temática.
Continuemos. Detentores que somos desta curiosíssima descoberta proporcionada pelas ciências exactas, ou seja, ficando a saber que a melhor forma de vencer o problema da alimentação dos cordeirinhos é pô-los a comer onde for mais barato, mesmo que isso signifique a exaustão do local, cumpre-nos agora trazer a realidade para o mundo dos humanos, particularmente para o domínio da inocente e doce criancinha atrás referida. Urge questionar se a solução encontrada para estes bípedes humanos é idêntica.
Para melhor nos esclarecer, dispomos de um caso de estudo que vem mesmo a calhar: é fresquinho, está em todos os meios de comunicação social e tem dado direito a polémica que até ferve; trata-se de uma menina de cinco anos, inserida numa escola pública, e a quem terá sido alegadamente negado o direito ao almoço no estabelecimento de ensino. Resumidamente, a criança não terá tido direito à sua refeição normal, em virtude da existência de dívidas por parte da encarregada de educação.
Para se compreender melhor a enormidade deste dislate imagine-se que a criança tinha necessidade de ser assistida pelos serviços de urgência de um qualquer hospital público:
– Se a mãe fosse devedora ao Hospital, a criança também ficava sem ser assistida?
Infelizmente, a resposta tem duas vertentes, a legal / deontológica (que podemos considerar dentro da Axiologia) e a profissional (no domínio da Praxis).
Do ponto de vista legal (com exacta correspondência deontológica e também humanitária) a resposta é inequívoca: o direito à saúde e à educação básica (etc.) são inalienáveis e inoponíveis, qualquer que seja a situação creditícia do utente (ou a dos seus legais representantes) perante a instituição em apreço.
Já do ponto de vista profissional, como todos sabemos, uma nova geração de tecnocratas (que se estende por todos os escalões do poder) coloca a sustentabilidade do sistema à frente dos princípios e objectivos do mesmo, mesmo que eles estejam constitucionalmente consagrados (como é o caso).
Efectivamente, a esta nova geração tecnocrática – que sucede a tantas outras e que parecem perpetuar-se historicamente – põe-se a questão de defender, como ponto de honra, que os princípios são muito bonitos e muito necessários, mas apenas se houver dinheiro para os pagar. A finança torna-se, deste modo, centrípeta e passa a encerrar fins em si mesma, e já não se situa já num plano meramente instrumental e ao serviço do desenvolvimento da Condição Humana.
Assim, tecnocraticamente falando e recorrendo novamente à aplicação da Teoria dos Jogos, para a refeição daquela criança punha-se um cenário de decisões possíveis pela Escola, com impacto no ganho ou perda de 1,46 € (preço de venda da refeição em causa e sem considerar os escalões sociais)

Uma vez mais, a solução que matematicamente melhor serve os interesses da tecnocracia é também aquele que também se alia ao interesse da contraparte, que é a mãe, com um resultado de resto zero, pois ninguém paga nem ninguém recebe o 1,46 €. Neste cenário, a Escola em causa não dá a refeição e não corre o risco de arrecadar a supra mencionada paga do ingénuo; ou seja, livra-se da possibilidade de ficar a “arder” em mais 1,46 €. E foi precisamente esta a solução encontrada…
Como já certamente compreenderam, com um bocadinho mais de tempo e de trabalho seria possível transportar esta síntese da aplicação da Teoria dos Jogos (concatenada com a Teoria da Decisão) para o cenário maior de um Orçamento Geral do estado. Resista-se, todavia, à tentação comparativa…
Contudo, esta mesma casta de tecnocratas, iluminados, super-formados e híper-inteligentes cai, direitinha, na “armadilha da inteligência” a que tão bem se refere o Professor Edward de Bono (1992): “Muitas pessoas extremamente inteligentes adoptam com frequência um ponto de vista sobre um assunto e depois utilizam a sua inteligência para defender esse ponto de vista. Uma vez que conseguem defendê-lo muito bem, nunca vêm qualquer necessidade de explorar o tema ou de considerar pontos de vista alternativos. Isso é um pensamento pobre e faz parte da «armadilha da inteligência»“.
Não sou a favor de calotes, usando a figura que tem sido tão propalada por alguns políticos nos últimos tempos, mas julgo que ainda há sedes próprias para resolver questões de crédito e que se situam fora do estômago de uma criança de cinco anos.
Quem não compreende este ponto de vista e acredita que se deve viver segundo o primado de coisas como a “sustentabilidade” ou “credibilidade financeira” está condenado a repetir a história e a compreender – na pele – porque é que surgem as revoluções. Ou, por outras palavras, que a verdadeira “Tragédia dos Comuns” poderá ser a incapacidade de se perceber que os cordeirinhos também se podem transformar em lobos de vez em quando.
João Gonçalo de Bianchi Villar (Pós-graduado em Gestão de Protecção Civil Municipal)















