PUB
Há quase-segredos que apesar de já terem ocorrido há alguns anos ainda merecem que se contem, porque na altura, pelas mais diversas razões ou motivos, não passaram do conhecimento do núcleo muito restrito daqueles que neles estiveram diretamente envolvidos. Este tem mais de duas décadas e meia e é significativo de como por vezes situações de forte impacto sobre a vida dos cidadãos podem ser tratados.
Um dos grandes impulsos estruturantes, se não o maior, que o Entroncamento sofreu nas últimas décadas foi indiscutivelmente a chegada do IP 6, a autoestrada que assomou à zona norte da cidade em 1995 com promessas de um enorme incremento na mobilidade, na industrialização, e no desenvolvimento da urbe. Mais conseguidos e cumpridos uns objetivos que outros, a autoestrada, mais tarde rebatizada por A 23 e portajada para desconsolo de quem dela mais desfrutava, terá sido em termos estruturais um complemento essencial ao papel que os caminhos de ferro desempenhavam, embora já em fase de notório declínio.
O IP 6 surgia assim como uma bênção, um fator de atração notável e com grande influência no admirável crescimento residencial posterior da zona norte da urbe, na melhoria da mobilidade regional dos munícipes, não tanto no desenvolvimento das indústrias e da zona industrial que muitos perspetivavam para impulso do emprego próprio e adjacente. O que os entroncamentenses estão longe de imaginar é no preço que a cidade esteve ameaçada de pagar por tanto benefício. O que chegou a estar nas perspetivas de estudos prévios da então Junta Autónoma de Estradas (JAE) para o troço local do IP 6 era que o trajeto pura e simplesmente passasse pelo coração urbano da cidade. Junto ao nó onde atualmente se situa uma grande superfície comercial, o desenho do IP 6 infletia corajosamente para dentro da urbe num percurso que atualmente serve a avenida Villiers-sur-Marne até junto da rotunda instituto de línguas, prosseguindo pela rua Dr. Francisco Sá Carneiro rumo ao Bonito e à zona onde posteriormente se edificariam as piscinas municipais, transpondo nesse local a barragem do Bonito e a linha do Norte e com o segmento seguinte a chegar até ao nó da Atalaia. Era uma das alternativas defendidas com argumentos financeiros, técnicos, ambientais e muito denodo pelos técnicos da JAE, e que não foi fácil impedir por parte da Câmara do Entroncamento. Quem conta hoje esta epopeia de cenários rodoviários travada em Almada, sede da agremiação responsável pelas estradas nacionais, é o ex-presidente da Câmara do Entroncamento, José Pereira da Cunha, que liderou a autarquia no período em que os estudos prévios do trajeto regional do itinerário principal com perfil de autoestrada estavam a decorrer. Quando a opção de “passar por dentro” começou a ganhar vulto, e depois de emitir pareceres veementes e contrários a tal desígnio que aparentemente não eram considerados pela JAE, José Cunha e um quadro técnico superior do município acabaram por acordar uma reunião em Almada para analisar todas as implicações de uma autoestrada a atravessar um centro urbano como o da cidade ferroviária. “Não foi nada fácil a reunião. Houve calor e muita discussão. Nós, responsáveis da Câmara do Entroncamento, como era nosso dever, procurámos demover a ideia aos técnicos, mas eles tinham os seus argumentos que tivemos que rebater, pois as implicações que teriam na cidade eram muito negativas”, recorda José Cunha, que não esquece a muita “luta” e pouca genuflexão então travada para preservar a integridade do centro urbano e os constrangimentos que a intrusão da autoestrada iria impor à população da cidade. O IP 6 acabou por se tornar periférico e seguir o percurso que hoje é percorrido passando entre o Casal do Grilo e o Casal Sentista, e galgando a linha do Norte num volumoso viaduto antes de chegar à Atalaia. Quanto às brenhas que a alternativa idealizada de roupão, pantufas e bem longe do Entroncamento teriam para a cidade, para além da de muitos entroncamentenses disporem gratuitamente do fascínio de ver passar o trânsito aos domingos da varanda, serão hoje um desafio virtual à imaginação e o raciocínio de cada um. E seriam também um absurdo a acrescentar a outros absurdos históricos e urbanos que, no seu tempo, frutificaram e prosperaram por aí…
PUB