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Hoje, 24 de outubro, é dia municipal para a Igualdade. Estou a escrever esta crónica no Cineteatro São João, no Fórum Igualdade na Juventude e a sala está muito composta, acima de tudo por alunos do Agrupamento de Escolas da cidade.

É bom ver tantos estudantes, adolescentes, de várias origens, cores de pele, estilos, a ver e ouvir os intervenientes no fórum. É assim que vão recebendo imagens sobre o passado, um cinzento passado, e se vão apercebendo que hoje, felizmente, o nosso país está mais igual, mais tolerante, apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer.

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Mas é ao olhar para estas dezenas e dezenas de alunos, ao olhar para esta paleta de cores e diversidade, que se vislumbra o futuro, porque é nas escolas que a integração acontece, as barreiras se derrubam e a cidade floresce.

E é preciso escrever, falar e discutir o que tem acontecido na cidade, nomeadamente atos criminosos cometidos por um punhado de meliantes. O ruído foi e é tal que nos esquecemos de olhar para os aspetos positivos.

O Entroncamento é uma cidade que, há bem pouco tempo, era um aldeia. E antes de poder estabelecer-se como aldeia já estava a ser empurrada para vila. Quando chegou a cidade ainda estava no início da adolescência.

Lembro-me bem da cidade de há cerca de 30 anos quando eu, que jogava futebol no Clube Amador de Desportos do Entroncamento, entrava no comboio em Santa Margarida (Constância) e atravessava o Tejo semanalmente para chegar à cidade. Era uma cidade com menos luz, mais triste. E já nessa altura olhava para a arquitetura da cidade e descobria dores de crescimento.

Não é raro encontrar locais em que se sente a “arqueologia” da cidade. Uma casa térrea de aldeia, seguida de um prédio com dois andares e seguido de outro com 5, 6 andares. Olhar para esta imagem é perceber que o Entroncamento foi “obrigado” a crescer mais depressa, que quase não teve tempo para viver a sua infância e adolescência. A estação de comboios alimentou a cidade com combustível, leia-se pessoas, trabalhadores, moradores, visitantes.

E o combustível fez com que o comboio acelerasse, por vezes sem controlo.

Hoje, a cidade é cosmopolita, diversificada, desassombrada. Não perceber isto é não lembrar a aldeia. A cidade é isto tudo mas ainda tem tiques de aldeia, com as suas facetas positivas e negativas. É uma cidade relativamente pequena, onde se pode ir de um limite geográfico ao outro de forma bastante fácil e rápida. Como nas aldeias, os mexericos são uma constante. Como nas aldeias, não todas, claro, há falta de mundo. Falta mundo a muitas pessoas, porque é a viajar e a conhecer que vamos ficando mais tolerantes. Falta despojarmo-nos de quando em vez do nosso egocentrismo.

Sim, o Entroncamento tem problemas. Que cidade não os tem? A imigração alterou a definição da cidade mas arrisco, com confiança, a dizer que a alterou para melhor.

Não será nada fácil, para quem gere o município, as escolas, as instituições, verem-se perante tão bruscas alterações sociais. E apesar de não querer arranjar desculpas para os erros cometidos, estamos a falar sobre uma cidade adolescente, que cresceu tão depressa que o seu corpo ficou algo disforme e que agora tem de trabalhar para ficar em forma, para corrigir esses erros. Uma cidade que ainda vai ao pediatra.

A percepção de insegurança, falsa ou não, é uma construção que parte de acontecimentos factuais, mas que depois se alastra e de torrna disforme na acefalia das redes sociais. Tal como numa aldeia, as conversas começam com a informação de que o filho da vizinha partiu um dedo a jogar à bola e, depois de essa mesma informação passar por várias bocas e cabeças, no fim já o filho da vizinha estava no hospital em coma pondo a aldeia em alvoroço e clamor. Não, o filho da vizinha partiu um dedo, o dedo mindinho, estava na baliza.

É uma responsabilidade de todos(as) ter cuidado e pausa quando se atiram vorazmente para os ecrãs e teclados para destilar ódio. Quer queiramos quer não, estamos a construir uma “realidade” social que será habitada pelas novas gerações.

Sim, houve e há assaltos na cidade, mas não é exclusivo do Entroncamento. Embora pareça.

Estar aqui, no cineteatro, a discutir a Igualdade é pensar como cidade, sem desprimor para as aldeias ou vilas. E é por ver aqui estas muitas dezenas de crianças e adolescentes a ouvir falar sobre o que os une e não o que os separa que consigo vislumbrar o futuro, mais coeso e adulto. Acredito, piamente, que é nas escolas, no convívio entre crenças, costumes e origens diferentes (com a ingenuidade e esperança como ingredientes secretos) que a cidade se poderá emancipar com maior solidez. Acredito que são as crianças e os adolescentes que vão ensinar o Entroncamento a ser adulto, mas um adulto com sonhos.

Todos os apelos a que não se envenene o poço, de onde todos bebemos, são poucos. Somos adultos e comportamo-nos tantas vezes como crianças indisciplinadas. Tudo o que fazemos, dizemos e escrevemos, bom ou mau, espalha-se rapidamente nesta cidade-vila que há pouco tempo era aldeia.

Temos de dar tempo e espaço para que as novas gerações se emancipem, de as deixar crescer ao ritmo certo, e não criar condições para que tenham dores de crescimento desmesuradas.

Está nas nossas mãos. E teclados.

Ricardo Alves – Diretor EOL

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