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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

 

 

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Depois de uma semana de dificuldades, problemas e algum desânimo para tentar renovar a matrícula os seus filhos nas escolas, por vezes noite dentro, tentando aproveitar a maré baixa no acesso ao portal de matrículas próprio do Ministério de Educação (ME) para as efetuar, os pais dos jovens alunos portugueses souberam agora que esse processo poderá ser feito automaticamente para a maioria dos anos de escolaridade. Salvo o caso de transferências ou da entrada num novo ciclo escolar, a renovação das matrículas geram-se automaticamente após a conclusão das avaliações do ano letivo. Para o ministério, o colapso do portal na aceitação das matrículas deveu-se a ataques informáticos, que o bloquearam. Mas o mais provável é que o colapso tenha sido simplesmente fruto da enorme desproporção entre a capacidade do portal e o imenso fluxo diária a que foi sujeito, mais de cem mil matrículas nalguns dias, segundo o próprio ME, bloqueando o seu acesso, deixando o portal em baixo e desesperando pais e encarregados de educação.

O atual ano letivo, por motivos óbvios, foi um ano absolutamente anómalo, com o confinamento sanitário a obrigar os jovens alunos, os docentes (em particular os diretores de turma), as direções dos agrupamentos e os pais (alguns dos quais tiveram pela primeira vez uma noção aproximada do que é uma escola e do que andam lá a fazer os seus filhos) a um esforço acrescido, chegando alguns mesmo à beira da exaustão e de algum burnout. E não foi caso para menos. Mas nem todas estas excecionalidades que foram ocorrendo, e para as quais se foi improvisando, remendando e encontrando soluções ad hoc, emocionaram o ME. Este foi incapaz de alterar o seu modus operandi e de compreender que a história da devolução dos manuais escolares deveria este ano merecer uma postura mais flexível e adequada a todos os insólitos ocorridos, até porque haverá alunos com exames em setembro, e esses manuais são o único recurso por onde poderão estudar. Longe das escolas, longe dos seus colegas e dos professores durante cerca de 40 por cento do tempo letivo previsto para 2019-2020, era importante que aos alunos se deixasse ao menos por mais algumas semanas livros e manuais, para durante as férias poderem rever matérias, esclarecer dúvidas, preparar-se para os exames e aprofundar os conceitos que a sua curiosidade os levasse a procurar mais além. Insensível a estas realidades, o ME impôs a devolução dos livros. Era essa a regra, e as regras são assim, mesmo que o bom senso aconselhasse a revê-las de modo provisório. Agora o ME suspendeu essa devolução, e permitirá que os alunos fiquem com os manuais até setembro. Não tem nisso mérito nenhum. A decisão veio dos deputados da Assembleia da República, e os feiticeiros educativos do país apenas tiveram que meter a viola nos saco, sem honra nem inteligência  ̶   e com isso não evitaram que filas intermináveis de alunos, pais e encarregados de educação se tivessem formado no portão das escolas para restituir os manuais escolares.

A estratégia do ME para as escolas portuguesas é uma obra-prima de marketing  ̶  “Nenhum aluno pode ser deixado para trás!”. Mas é também, na prática, um manifesto de hipocrisia, romantismo, muita ineficiência e pouca lucidez. E, no que tem de positivo, é para ser aplicada pelos professores e escolas, mas não pelo ME que, aparentemente, lança as diretivas, mas depois fica do lado de fora o assunto. É bom trazer todos os alunos portugueses para a escola e combater o abandono e o insucesso, mas depois esquecem-se que todos eles têm direito a um ensino estimulante, uma formação de qualidade e a uma avaliação com critério e sobretudo séria. E não é isso que se faz ao impor como “orientações” às escolas e aos professores um ensino cego em que “a retenção dos alunos tem um carácter absolutamente excecional”, incentivando ao facilitismo dos critérios, oo laxismo das atitudes e à irresponsabilidade dos comportamentos. Para estes socialistas burocráticos, tudo vale − e se o sucesso não é real, pois isso exige método, trabalho e persistência, há que fantasiá-lo com os triunfos de secretaria, que apenas exigem cremes cosméticos para o rosto, algum batom e pouco pudor.

Os efeitos diretos e imediatos que se conseguem com este sucesso delirante e obtido por édito é o menor empenho e a diminuição do sentido de responsabilidade dos alunos, que, se “conseguem” transitar de ano sem esforço e tirando partido de “leis” tão absurdas, não se vão decerto cansar a estudar. É o princípio da energia mínima à escala humana, e isto pertence à antropologia e também ao ensino numa turma. E é o mutilar do sentido de “ir mais longe e mais além” dos alunos, que resulta da consequência natural de premiar o esforço, o talento e o espírito de pesquisa, e penalizar quem não quer trabalhar, e é indisciplinado e perturbador.

O ministro do eduquês já fez saber que no próximo ano escolar não haverá redução do número de alunos nas turmas. E, assim, não contribui, como era o seu dever, com as medidas mais básicas de prevenção contra a propagação da Covid-19 nas escolas, aspeto que nesta altura está a causar bastante apreensão entre os especialistas. Por outro lado, o responsável educativo garante que se a escolas funcionarem em sistema híbrido (parte dos alunos nas aulas, e a outra parte no chamado ensino à distância) serão os alunos que mais gostam da escola, nela se mostram mais dinâmicos, a ela mais se dedicam, e melhores resultados obtêm, os que ficarão mais penalizados e do lado de fora. Vão ficar em casa pendurados nas plataformas de teleaprendizagens, o que, para além de irónico, não deixa de ser contraditório. Vão às aulas quem não gosta da escola – e são ostracizados os que a amam e dela tiram partido, dignificam e valorizam. Há que reconhecer que “ninguém deve ficar para trás” – e isto deve ser assumido em todos os sentidos. Sendo assim, a ela têm também direito os que se esforçam e estão mais sintonizados com o espírito de excelência, que também é (ou devia ser) o das escolas, sejam elas públicas ou privadas, embora o caso seja mais pertinentes para os estabelecimentos públicos.

E, last but not least, há que referir ainda a forma tóxica e quase kafkiana como os professores têm vindo a ser tratados pelo elenco de caricaturas que desgovernam a educação do país desde, pelo menos, 2005. Depois de terem visto a sua natural autoridade pedagógica posta (perversamente) em causa na sala de aula, e visto menorizado o seu estatuto e dignidade social, os docentes estão hoje esmagados por absurdos, anacrónicos, inúteis e estéreis procedimentos burocráticos, que esgotam as suas melhores energias e desfocam-nos das aulas, do ensino e do incentivo à aprendizagem dos seus alunos, pois pouco ou nenhum tempo sobra para isso. O eduquês imposto pela confraria de magos nas escolas, impõe também reuniões a propósito de tudo e de nada, relatórios detalhados sobre minudências  ̶  e uma impressionante incapacidade de compreender como isto é tudo tão estéril. É, sobretudo, não entender que as escolas foram criadas para os alunos aprenderem com serenidade a serem pessoas capazes, criativas, críticas e responsáveis  ̶  e não um palco para as suas fantasias, vaidades hierárquicas e ideais políticos e sociais absurdos.

Estes magos e magas, um dia iluminados por uma aparição que só a eles chegou, carregaram as pobres escolas de planos, escrutínios, preenchimentos de grelhas analógicas e matrizes digitais de todas as espécies, mas tudo com a mesma evidente inutilidade que ficções e tretas para todos os gostos. Um caleidoscópio de visões, mas com dois problemas  ̶  parasitam as energias de quem quer trabalhar, e não funcionam. E quem fica com o prejuízo todo é o país e a sociedade, porque a confraria se sente acima de todos os seus disparates.

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