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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Os últimos dias foram férteis na região a dar mostras sobre a essência da natureza da política à portuguesa, da hipocrisia das intervenções que se fazem no seu areópago nacional e da razão por que os cidadãos eleitores se vão alheando cada vez mais dos atos de consulta pública da sua vontade, considerando-os cada vez mais cínicos e sobretudo ineficazes. Quem pode, em Lisboa, alheia-se sem remorso das dores do interior do país; e no Interior, os seus representantes democráticos pouco mais podem fazer que reunir, sensibilizar, contestar, apelar e bater-se por aquilo em que acreditam, que pode trazer mais-valias à região, mas que se vai gorar na indiferença de quem em Lisboa pode.

No início do mês, com o Centro Cultural de Vila Nova da Barquinha cheio, muitos autarcas, investidores, técnicos, membros das forças armadas e cidadãos mais empenhados debateram a possibilidade de ampliar a missão da antiga base aérea de Tancos, tornando-a capaz de, com algumas intervenções, servir para funções civis e voos turísticos e comerciais. O Médio Tejo e o país beneficiariam bastante com essa remodelação, e argumentos não faltaram naquela assembleia regional, com algumas vozes conhecedoras e autorizadas. Falou-se da centralidade de Tancos, da sua apetência para acolher voos low cost, da aproximação às autoestradas A 1, A 13 e A 23, a Fátima (com três milhões de visitantes que chegam a Portugal por via aérea e “o único destino turístico da Europa que cresce a dois dígitos”) e ao nó ferroviário do Entroncamento, da sua complementaridade ao aeroporto da capital e de que seria importante se houvesse uma estratégia nacional na área do turismo. É preciso criar novos aeroportos, pois a aviação está a crescer a 6,2 por cento em cada ano, e Tancos tem “tudo para dar certo”. É claro que em tão ilustre assembleia não esteve presente qualquer oposição à ideia. Mas a convicção que fica mesmo é a de que o encontro não passou de mais uma liturgia ritual. Mais uma. Como se, por pudor, se tivesse de cumprir periodicamente este rito sobre as potencialidades e virtudes virgens do aeroporto de Tancos. Os argumentos podem multiplicar-se (o aeroporto Humberto Delgado já não suportará o crescimento de voos que tem tido por muito tempo), mas falta entusiasmo a estas assembleias, pois ninguém ali acredita que o deus algarvio das finanças nacionais venha a dispensar um minuto ou um cêntimo a tão nobre causa. Tancos tem tudo para dar certo, mas nunca passará dessa causa nobre.

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Outro ritual regional teve a sua celebração litúrgica uns dias depois junto à ponte sobre o Tejo na Chamusca  ̶  e a consagração, que esteve a cargo da deputada do Bloco de Esquerda Fabíola Cardoso, foi sobre a mesma. Fabíola, jovem, idealista, de esquerda, e sobretudo crente, deixou-se embarcar na ilusão das aparências. Em abril de 2018, no mesmo hemiciclo de bailados marialvas e insultos entusiastas em que agora se senta, aprovara-se por unanimidade uma resolução que recomendava ao governo a construção de uma nova ponte sobre o Tejo entre a Chamusca e a Golegã, dado o óbvio estrangulamento da atual travessia, onde verdadeiras odisseias ocorrem sempre que dois camiões se encontram a meio do trajeto. Fabíola tem todas as razões, exceto a de não ter entendido que em política há um abismo na ponte que liga a margem da recomendação à outra, que a configurará em lei. E caiu dele abaixo, porque os vira-casacas da Assembleia da República voltaram a fazer aquilo que melhor sabem  ̶  mudar de opinião ao sabor das conveniências, dos interesses e da indecência. A centenária ponte de ferro, concluída em 1909 por especial incumbência de João Joaquim Isidro dos Reis, irá continuar a servir para lubrificar a paciência dos seus utentes com esperas longas e alguns episódios demasiado picarescos para um país tão civilizado.

De resto, no Médio Tejo, há muitos outros rituais sociopolíticos que vão decorando as estações do ano e a triste realidade do dia a dia e das legislaturas, como o cantar dos Reis e a apanha da espiga. Recordo-me de um que ocorria como um pêndulo bissexto e sempre que se aproximavam os votos e as eleições legislativas. A regularização do Tejo, com uma versão de maior categoria reivindicativa que era a da regularização e navegabilidade do rio, era uma delas. Esmoreceu nos últimos anos face à lamentável situação a que se deixou chegar o caudal do rio, que já não leva água nem traz votos. Outro culto ritual, reivindicativo e sem santo que já começa a ter cabelos brancos é o das manifestações em torno do pagamento de portagens na A 23  ̶  outro privilégio com que os neoliberais dos últimos governos contemplaram a região, e que resulta também de o Médio Tejo ser mais estatística que alma e ethos.

Gradualmente, esta identidade, que nem sequer está em crise porque também nunca a teve, a que chamaram Médio Tejo, com esta falta de investimento público gritante (a recente aposta da Medway no Entroncamento foi obviamente privada), vamo-nos tornando cada vez mais Interior, que é também um estado de espírito induzido. E o que é mais irónico e hipócrita  ̶  quando o investimento público mais se concentra nos focos urbanos mais desenvolvidos e o Interior vai desfalecendo e despovoando  ̶ , é ver agora o governo criar o autoproclamado Ministério da Coesão Territorial, enquanto mantém alegremente os privilégios de uns e a condenação a uma morte lenta dos restantes. É de génios. Mas também é preciso ter lata!

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