Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Há poucos dias, uma pessoa já de idade respeitável, mas ainda bastante ativo, chamou-me à atenção ao que está a acontecer com as velhas ligações entre o Entroncamento e a Quinta da Cardiga, que sempre foram caminho que ele e outros, desde jovens, andarilharam, e que nos últimos tempos, talvez nos últimos dois ou três meses, foram atingidos pelos desígnios do progresso. Em consequência, e tal como hoje acontece a muitas coisas da nossa vida, passaram a ser virtuais, isto é, deixaram de ter existência física, e por isso deixou de se poder andar neles a pé, de bicicleta, de BTT ou noutros meios mais alternativos e igualmente rudimentares. O problema é que nestes caminhos de pé posto, e agora virtuais (sim, encontram-se ainda na Internet, e é possível ainda identificá-los no Google Maps ou em algumas cartas militares, mais detalhadas) já não se pode presentemente transitar, são caminhos de memórias, de saudades de quem os trilhou, mas já não servem para andar.

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Um destes percursos suprimidos feitos pelo pisoteio humano ligava a Cidade Nova, a zona urbana mais a sul do Entroncamento (e cujo projeto urbanístico ficou em stand-by devido às diversas crises que têm afetado o país), aos chamados Portões Grandes da Quinta da Cardiga e tinha uma trajetória curiosa, um longo arco de circunferência, pois contornava em toda a sua extensão um enorme terreno agrícola habitualmente cultivado e servido por um gigantesco pivô de rega que lá se encontra. Este trilho, que servia a população rural e mais humilde de São Caetano, que vinha a pé ou de bicicleta ao Entroncamento, ou da cidade se dirigia ao Tejo ou à Quinta da Cardiga, substituiu há uns anos um outro, muito antigo, e conhecido pelo caminho do Casal do Conde – um casal com habitações e residentes, horta e um poço (hoje sem qualquer sinal de terem alguma vez existido), a meio caminho entre a Cidade Nova e os Portões Grandes. Este último acesso ligava então quase em linha reta os Portões Grandes à zona onde atualmente se encontra a rotunda entre as escolas António Gedeão e Dr. Ruy d’Andrade e atravessava terrenos da vasta Quinta da Cardiga.  Era um caminho vicinal, público, e bastante usado pelos entroncamentenses (sobretudo para desporto e lazer) e pelos sãocaetanenses, que vinham trabalhar ou fazer compras nalguma mercearia, num talho ou nalgum padeiro da cidade.

O outro trajeto pedonal fanado acompanhava o leito da Ribeira de Santa Catarina desde a zona onde esta passa a estar descoberta até ao troço do Itinerário Complementar 3 (IC3), num local entre os dois portões de acesso à Cardiga. Metade deste percurso foi absolutamente amputado ultimamente, ficando no seu lugar uma área de cultivo, que não o poupou, apesar do caminho seguir discretamente ao lado do silvado e da vegetação ripícola marginal à ribeira. Juntando os dois casos, mais o do caminho coletivo que atravessa o leito da ribeira e se dirige à velha ETAR da cidade, absolutamente descaracterizado por uma viatura jurássica que o deixou deformado, a situação de quem por ali quer (ou queria) circular está amarga.

A questão que se coloca neste caso é obviamente a do eterno conflito entre o interesse público e o interesse privado, ambos respeitáveis e louváveis, mas que de vez em quando entram em choque. O proprietário daquelas terras, que já foram da Quinta da Cardiga, mas atualmente desconheço quem seja, terá todo o interesse em maximizar os proveitos que o seu pleno cultivo possa trazer. É o interesse privado. Mas a vereda que lá se encontrava era antiga, não sei se de tempos imemoriais – o que lhe garantiria logo, segundo julgo, direitos de usucapião aos seus utilizadores. E estes tinham nela interesses constituídos, e que configurariam de algum modo um interesse público. Conheço o local, no prolongamento natural da ciclopedovia do sul, e posso garantir que ainda há poucos meses várias eram as pessoas que o usavam, e até com alguma frequência. Já não era propriamente o velho caminho de utilização coletiva para vir à mercearia ou para se chegar ao Tejo a pé ou de bicicleta, mas, dado a sua discrição quase bucólica e o arvoredo e vegetação ripícola que lhe davam moldura, era utilizado por quem queria sair do reboliço da cidade para corridas a pé para limpar a cabeça, caminhadas meditativas ou trajetos em BTT pelos mais jovens. Por estas razões, não tenho dúvidas que a cidade e as pessoas que a habitam ficaram agora um pouco mais pobres e ainda mais confinadas. Na sociedade, para que se viva em harmonia, há que saber articular o proveito individual com as vantagens coletivas.

O filósofo e grande economista escocês Adam Smith, que muitos têm como o pai da economia moderna, acreditava que a conjugação dos dois interesses se fazia naturalmente e ambos se equilibravam. Que perseguindo o interesse privado se atingia o bem comum, e que havia nesse equilíbrio uma “mão invisível” que zelava para que ele funcionasse. E era nas suas longas caminhadas rurais, totalmente absorto nas suas ideias que acabariam por ser tão inovadoras, que Adam Smith chegou à ideia da compatibilidade económica e até social entre o egoísmo pessoal e o interesse da sociedade no seu conjunto, daí saindo as reflexões que deram origem à sua magnum opus A Riqueza das Nações. Consta que um certo dia, domingo, depois de alguns passos incertos pelo jardim à volta da sua habitação, em Kirkcaldy, na Escócia, tendo vestido apenas um roupão sobre o corpo, Adam Smith pôs-se a andar por um caminho (ainda se estava longe do trânsito dos primeiros automóveis), e de tal modo iria absorto nos seus pensamentos que só deu por si 19 quilómetros mais à frente, e apenas porque começou a ouvir um estranho repicar de sinos que chamavam os fiéis para a missa dominical. Isto poderia ser um hino aos benditos caminhos pelo campo de terra batida pelos pés…

Zelando cada um por si, garantia-se que a sociedade ficava melhor e funcionaria de uma forma mais perfeita. Mas nem sempre é assim. E por vezes há caminhos que desaparecem sem deixar rasto, e sem que ninguém se incomode com isso − salvo as pessoas que por lá passeavam ou iam ao Tejo ou vinham buscar mercearias, ouviam o canto das aves no arvoredo e que vão ter saudades. As saudades dos caminhos velhos…

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