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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Em três dias sucessivos no declinar do mês de abril de 1506, já lá vão mais de cinco séculos, Lisboa ficou marcada a ferros por uma chacina popular, ativada e acicatada por frades dominicanos do Convento de São Domingos, que a história do país preferia esquecida ou, pelo menos, deixar na obscuridade, e que ficou conhecida para uma posteridade envergonhada como a Matança dos Judeus de Lisboa. As condições sociais da capital eram deploráveis, pobreza, fome, uma lamentável falta de higiene generalizada, a seca e, como consequência, uma devastadora peste grassava pela cidade, ceifando vidas com desespero e sem piedade. Com os Descobrimentos Portugueses, a capital do novel império marítimo enchera-se de gente de muitas latitudes, raças e credos, uns vindos como escravos, outros, como os judeus, trazendo conhecimentos e recursos para dar fôlego à aventura das naus e caravelas, e capazes de as transformar em negócios prósperos. Muitas famílias judaicas sefarditas, estima-se que próximo de cem mil pessoas, tinham vindo para Portugal, a partir de 1492, expulsas pelos Reis Católicos de Espanha, o seu espírito de iniciativa fora importante para impulsionar o rumo para o mar, tiveram funções importantes, eram matemáticos e médicos, mas tiveram depois de se converter ao cristianismo para se manterem no país. Eram os conversos, cristãos-novos, marranos ou criptojudeus. Poucos acreditavam na autenticidade dessa conversão, praticariam ocultamente a sua fé original e seguiriam os textos sagrados da Torah, mas em público diziam-se fiéis da cristandade. O ambiente era de crispação, tensão e de pré-ruptura social. A cidade estava nos limites do comportável.

A peste bubónica, proveniente da Ásia e embarcada para a Europa em embarcações cheias de ratos, que por vezes acolhiam piolhos – e estes, as tenebrosas bactérias que causavam a peste – espalhava desolação e, na pregação dos frades dominicanos, a peste era o resultado de Deus andar zangado. A doença era o castigo, e a culpa era dos judeus… Na tarde quente do dia 19 de abril de 1506, e no decorrer de uma liturgia na igreja de São Domingos, uma participante no culto terá visto um estranho reflexo de luz no altar e o rosto de Jesus Cristo iluminado, e terá ficado tão impressionada com a visão que a interpretou como a evidência de um milagre, logo excitando os demais presentes com a sua agitação. Rezavam todos por uma intervenção divina para que terminasse a peste (e também a seca) no país, e essa observação seria uma mensagem prenunciadora de algo mais… Uma aparição!

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Ao lado da vidente, todavia, um dos presentes não se mostrava tão enlevado, opinando que a iluminação observada nada tinha de transcendente, apenas cumpria as leis da óptica, era um reflexo normal num dia solarengo no interior uma igreja. E logo ali se armou uma enorme desordem, em que uma multidão arrebatada e crente no milagre se revoltou com o céptico, logo apontado como judeu, de nada lhe valendo as razões invocadas. Foi espancado e morto à porta do templo. Mas este episódio foi apenas o rastilho. A partir daqui instalou-se o caos. Uma turba de indivíduos, inflamada pela verve de dois frades dominicanos, incentivando-os contra os cristãos-novos, transformou o ódio popular instituído contra os judeus sefarditas numa matança. E foi assim durante três dias. O rei D. Manuel I estava fora da cidade (para evitar a peste), a corte real estacionava em Abrantes por idênticas razões, e as autoridades policiais em Lisboa não conseguiram segurar a turba e evitar o massacre. Centenas de arruaceiros, vilãos de toda a estirpe e marinheiros estrangeiros de barcos ancorados em Lisboa, associaram-se aos antissemitas e outros fanáticos e levaram a cabo uma das maiores vergonhas humanas executadas no país. É claro que o episódio, que incluiu perseguições a quem quer que fosse que alguém acussasse de judeu, e assaltos e roubos às suas casas, também remete para a psicologia tenebrosa das multidões, que agem como um monstro acéfalo comandada por qualquer demagogo talentoso, e para o papel que sobre elas pode ter a verve inflamada e o discurso do ódio de uma qualquer minoria ativa e movida a fanatismos, sejam religiosos ou outros. Foi o execrável Pogrom de Lisboa, que no relato do historiador Damião de Góis consumou a morte de duas mil pessoas (homens, mulheres e crianças), enquanto outros, como Samuel Usque, apontam para o dobro. Os judeus eram a causa da peste medonha e da seca severa que assolava todo o país…

Atualmente, Portugal e todo o mundo carregam o estigma de uma nova pandemia, igualmente proveniente da Ásia, que cruzou o mundo numa velocidade assombrosa e o afetou numa dimensão incomparavelmente superior às dos surtos das pandemias de outros séculos. Mas a forma de abordar uma doença tão enigmática como letal mudou radicalmente. Apesar da sua origem permanecer ainda dentro de algum mistério e uma certa suspeita, já ninguém a atribui a um castigo bíblico, embora algumas ideologias radicais queiram ver na propagação do novo coronavírus um sinal e uma mensagem, já não de Deus, mas de um destino e um determinismo teleológico que favorece os seus propósitos.

O pensamento mágico (que procura relações onde não as há, mas as suas superstições julgam que sim), e até vingativo e viral de há 500 anos à porta de uma igreja de Lisboa, deu hoje lugar em todo o planeta ao conhecimento científico. Há cinco séculos havia demasiados fanatismos cegos e nenhuma virologia humana, ainda seriam precisos três séculos até Louis Pasteur nascer. Hoje, conhece-se a forma de propagação da doença e procuramos, em conformidade, atuar de forma a cortar os passos do seu caminho e evitá-la. Há 500 anos incriminava-se e perseguiam-se os judeus por preconceitos odiosos e acicatados. Face ao desconhecimento das doenças, e ao medo que elas causavam, atribuíam-se as suas causas a sinistros bodes expiatórios, e se os odiassem (por qualquer preconceito inoculado anteriormente), melhor. Hoje, é diferente a forma de as pessoas encararem a Covid-19. Já não há multidões alvoraçadas, nem beatos puritanos e com odres de água benta a incentivá-las. O mundo procura reagir com racionalidade à forma como o vírus se propaga, e procura através de pequenos passos adaptar-se e moldar-se às suas investidas. Na frente da batalha surgem os heróis desta guerra, médicos, enfermeiros e outro pessoal hospitalar, bombeiros, autoridades e muitos voluntários. Na retaguarda, nos laboratórios e universidades de todo o mundo, cruzando áreas de conhecimentos de forma holística e proveitosa, batalhões de cientistas procuram testes, imunidades, vacinas, terapias e curas para enfrentar a doença. Como acredito no ser humano, na capacidade de se superar e naquilo de que é capaz, estou convicto que vamos ganhar esta guerra. E não é só por uma questão de fé.

Manuel Fernandes Vicente

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