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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Tem sido patente e óbvio, no Entroncamento, e é-o já há bastantes anos, o notável desempenho de muitos músicos da cidade, ou da sua área de influência, que em diversas circunstâncias se destacaram a um altíssimo nível e brilharam mesmo no panorama nacional  ̶  e que procuram, no difícil contexto atual, prosseguir uma carreira profissional ou semiprofissional na área (difícil) que escolheram para viver. Numa altura em que nos aproximamos dos dias em que o Entroncamento costumava celebrar as festas da cidade, palco onde estes artistas sempre recebiam o carinho e o reconhecimento do burgo e dos seus fãs, é pertinente reconhecer o seu importante papel na construção de uma certa identidade local, sem esquecer as dificuldades que porventura alguns estejam a passar com o “fecho da torneira” dos concertos, dos eventos musicais, dos bares e das muitas festas populares um pouco por todo o país.

Ao longo dos últimos anos, e mesmo já em 2021, em distintos programas e concursos de grande impacto dos principais canais de TV do país, muitos de nós habituámo-nos a admirar as performances e o talento revelados por cantores locais, como Ricardo Oliveira, Filipe Santos, Pedro Dionísio, Gonçalo Serras, Ricardo Monteiro e Mariana Tavares, entre outros. E a eles associaram-se, com projetos comuns ou paralelos, outros músicos e grupos com trajetos já vindos mais de trás, uns veteranos, outros consagrados, e alguns emergentes, como Walter Alexandre, Ricardo Esteves, Ricardo Costa, Dominique Ventura, Rui Almeida, João Pedro Vieira, Luís Santos, José Luís Borga, Fun2Rock (de Fernando Espanhol e João Tomé), Jorge Gerardo, José Maia, Jorge Esperança (e o seu quarteto), João Almeida (Carocho), Banda Klassikus, Amarelo, Dulce Félix e Nuno Gonçalves, tendo eu consciência da inevitável omissão de cantores e músicos que mereceriam que a não fizesse.

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Estes músicos, pela cooperação estreita que souberam gerar entre si, e em projetos coletivos ou identitários (por exemplo, em torno dos Fenómenos do Entroncamento, nas Festas da Cidade ou no Projeto Remember, a inspiração de Joaquim Raimundo − Quitó, que apostou em músicos da cidade, e também aguarda pelo fim do desconfinamento, ou pelas atuações em bares e esplanadas no Entroncamento e na região), sempre deram a imagem de uma movida própria, com os seus adeptos e uma dinâmica entusiasmada.

Mostraram-se, assim, sinais da ocorrência de um novo fenómeno, embora em moldes diferentes. Uma singularidade com que os últimos anos brindaram a cidade. Mas será, assim mesmo, um Fenómeno do Entroncamento, com o seu rosto aleatório e surpreendente?

Pelos primeiros anos da década de 1970, os EUA debatiam-se com a praga de uma criminalidade descontrolada e que não parava de ultrapassar os palpites que se faziam sobre a sua evolução, por mais pessimistas e sombrios que estes fossem. Os criminologistas, as polícias, os sociólogos e todos os peritos com interesses no caso não paravam de “explicar” o fenómeno e sugerir estratégias alternativas para o combate ao crime. Que devia haver um maior controlo no uso das armas e pagar pela sua recolha, que se devia aumentar o número de polícias nas ruas, que estes deviam usar estratégias mais inovadoras, que se devia aplicar a pena de morte e outras de grande severidade, que a economia frágil e o desemprego que gerava é que eram culpados, e mais isto e mais aquilo.

Mas a razão mais sólida desta criminalidade não era nenhum dos mil motivos invocados nas ruas, nos tribunais, nas esquadras e nos jornais   ̶  que também incluíam alusões étnicas, sexuais, políticas e até religiosas. A razão mais consistente nem era então passível de se imaginar, ou prever sequer as suas implicações.

Sucede que em 22 de janeiro de 1973, na sequência de uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) dos EUA, o recurso ao aborto foi abruptamente alargado a todo o país, e as mulheres que não desejavam ter filhos (que hão de ter motivos razoáveis para isso) podiam evitá-los, recorrendo legalmente aos hospitais. No início da década de 1990, as estatísticas federais começam, entretanto, a dar consistentemente notícias de uma evidência surpreendente: a criminalidade nos EUA estava a baixar de uma forma drástica – e não era consequência de nenhuma medida avulsa mais recente. O que estava a suceder estava ligado a uma razão nascida 17 anos antes e com a paternalidade do STJ norte-americano. O crime estava a baixar pela simples razão de que os seus presumíveis autores não tinham nascido 17 (ou mais) anos antes. O que sucedia nas décadas de 1970 e 1980 é que, não podendo abortar antes, centenas de milhares de mulheres tinham filhos que ou não desejavam ou não tinham condições para os criar. Muitas eram mães ainda adolescentes, sem estudos, pobres e sem condições de proporcionar um lar estável aos filhos. Nos anos 70, estes miúdos cresciam desamados e abandonados, tornavam-se adolescentes revoltados, antitudo e rapidamente abraçavam os trilhos do crime. Mas nos anos 90, estes miúdos já não cometiam crimes  ̶   simplesmente porque não tinham nascido em 1974 e nos anos seguintes. Sem eles, os delitos não tinham o seu grande pasto para arder. Acontece que foi graças aos autores Steven Levitt e a John Donohue que se pôde estabelecer esta relação, que não faz deles supostos defensores do aborto, mas apenas investigadores que foram capazes de ligar elos de causa-efeito com 17 anos a separá-los. E, como gostava de dizer José Saramago, factos são factos. É fácil atribuir uma causalidade entre uma queda infeliz e a fratura da bacia que ocorre de imediato. Mas, descobrir que uma causa produziu efeitos consequentes 17 anos depois, exigiu uma forma diferente de pensar, a que o influente psicólogo Daniel Kahneman se referia quando distinguia o pensamento rápido e intuitivo, do pensamento lento e refletido.

No Entroncamento, na última dezena de anos (talvez até um pouco mais) houve uma notoriedade enorme de músicos nativos, alguns com interessantes histórias para contar e prémios meritórios, mas ter-se-á devido isso a alguma chispa de sorte ou a algum cometa que deixou magia semeada pela cidade? A resposta para esta questão, uma vez mais, têm que se procurar algumas décadas antes, nos anos 1980 e 1990, e músicos como Gonçalo Serras, reconhecem-no sem hesitação. A resposta vem distante, dos Festivais da Canção do Entroncamento, organizados pelo Clube Amador de Desportos do Entroncamento (CADE), apresentados no velho e esgotado “Cine-Teatro São João” e vividos intensamente pelos jovens cantores da cidade e pelas suas famílias  ̶  e que os tempos modernos empurraram já para o limbo do esquecimento. Cada festival teve a sua história, era o acontecimento anual, muitos lembram-se ainda da Fernanda Oliveira e do saudoso Toni Oliveira, e nele também pontificavam João Saruga e a logística do clube e da autarquia como suportes de toda a engrenagem. Foram certames atrás de certames que geraram muita motivação, e exigiam esforço, dedicação, estudo e muita formação – os músicos davam o melhor de si, e procuravam sempre superar-se e surpreender.

Alguns anos mais tarde surpreenderam o país, sim, mas não nos deviam surpreender a nós. Os Festivais da Canção do CADE tiveram a sua época, possivelmente não repetível, mas quem quiser compreender o sucesso de hoje terá de recorrer ao trabalho ativo, motivado e distante dessas décadas encantadas. E ilustram mais uma vez, pelo exemplo, que “sucesso” antes de “trabalho” só nos dicionários…

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