Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

O exemplo de dedicação a uma causa e a forma como uma paixão pode vencer todas as dificuldades e contornar todos os obstáculos que se opõem ao sonho, incluindo aquelas tontas fantasias burocráticas de quem tem muito poder e pouco que fazer, encontram no paremiólogo Rui João Soares um bom paradigma do que é “antes quebrar que torcer”, embora ele nem uma coisa nem outra. Não foi por acaso que utilizei este último dito: foi por ser uma verdade que não flete, e porque é há dez anos o presidente da Associação Internacional de Paremiologia/International Association of Paremiology (AIP-IAP). Esta Organização Não-Governamental (ONG) está acreditada para prestar serviço de consultoria ao Comité do Património Cultural Imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) na área da tradição oral-paremiologia e tem Portugal como país-sede. Tavira, a cidade onde Rui Soares nasceu e vive, e a base operacional e logística da AIP-IAP, é, naturalmente, a Capital Mundial dos Provérbios.

Rui Soares, pessoa que muito prezo e admiro por múltiplas razões e que faz o favor de ser meu amigo (embora este texto esteja longe de ser a retribuição desse favor, e o meu caro leitor depressa já se aperceberá disso), organiza anual e exemplarmente, no início de novembro, e desde 2007, um Colóquio Interdisciplinar sobre Provérbios que reúne os maiores especialistas e investigadores mundiais da área da paremiologia. Este ano, previu, até setembro, que a sua realização se faria nos moldes tradicionais em Tavira, e contava como sempre com a preciosa cooperação da Câmara Municipal de Tavira e de uma unidade hoteleira da histórica cidade algarvia, que acolheriam os peritos da paremiologia mundial. Mas num curto lapso de tempo, todavia, viu todo este cenário desmoronar. Já não seria possível ter ninguém em Tavira, nem a realização do colóquio seria possível nos seus moldes convencionais. Os participantes inscritos já tinham as reservas marcadas no hotel e respeitavam-se estritamente as normas sanitárias em vigor. Porém, o hotel foi obrigado a fechar, e o colóquio ficava sem a maioria dos oradores vindos de todo o mundo e de todos os fusos horários.

PUB

Rui João Soares levou um soco, mas não é da têmpera de desanimar, e muito menos de desistir. E num reduzido período de tempo “estudou a matéria” e decidiu reinventar e remodelar o colóquio. Se não era possível assegurar a presença física dos 40 oradores e dos especialistas de provérbios de todo o planeta (contam-se por 34 mil os provérbios do mundo) no Algarve, havia que avaliar as possibilidades de recorrer às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e levar os provérbios ao mundo. Resolvia-se o problema invertendo a situação. “Se os Maomés não vêm à montanha, vai a montanha aos Maomés”. E, inspirado neste provérbio (um pouco adaptado, diga-se), pôs em marcha, apenas com a ajuda da esposa, Marinela Soares, a ideia de avançar com o 1º Congresso Interdisciplinar sobre Provérbio-Online, de modo a substituir com a devida dignidade o que seria o 14º Colóquio Interdisciplinar sobre Provérbios 2020 (ICP20, na sigla inglesa equivalente).

A experiência foi extraordinariamente fértil, mas não foi fácil. Como preparar um colóquio mundial debaixo de uma vaga pandémica inaudita, com oradores e outros participantes de África, Europa, Ásia e as Américas do Norte de Sul, onde se numas cidades era dia noutras era noite, e onde uma parte considerável dos participantes não estava propriamente familiarizada com a plataforma virtual utilizada. A natural diversidade de equipamentos informáticos dos participantes também não ajudava, e Rui Soares com a sua pequena equipa teve de ensaiar treinos individualizados com cada participante para que na hora prevista (a portuguesa), o colóquio avançasse. E fê-lo em absoluto, à hora agendada e com o cumprimento escrupuloso do horário.

“O esforço de todos resultou em êxito pleno com muitos ‘gurus’ a elogiarem a organização, não só em termos científicos, mas também pela forma como foram preenchidos os tempos de lazer”, disse-nos Rui Soares, criticando a burocracia indiferente e asfixiante que sempre recai sobre quem já se aventura sem rede numa iniciativa quase épica que exaltou o nome de Tavira no país, e de Portugal no mundo.

O colóquio deste ano que agora encerra, deixando poucas saudades ao mundo, centrou-se em torno da contextualidade e intertextualidade dos provérbios; da construção de uma herança comum europeia de provérbios; da educação e do diálogo interdisciplinar, através do uso de provérbios; e de questões relacionadas com os provérbios e com a sua tradução. Houve ainda intervenções que ligaram os provérbios ao teatro e à linguagem gestual, outras versando o recurso aos adágios nas aventuras de Astérix e na atual pandemia, e outras ainda mostrando a forma como os adágios podem enquadrar algumas áreas do conhecimento. As edições anteriores também forneceram experiências e conhecimentos que permitiram a Rui Soares e à esposa, encontrarem recursos nas TIC utilizadas – o Youtube Canal de Paremiologia e o www.facebook.com/associacaointernacionalparemiologia. As plataformas tecnológicas usadas permitiram que os 40 participantes intervenientes, em fusos horários muito afastados pudessem ter sido escutados por quase 400 pessoas que assistiram online.

“No dia da sessão de abertura, após a oratória das entidades convidadas  ̶  a presidente do Município de Tavira, o representante da UNESCO, o embaixador da República Checa, a diretora regional de Cultura do Algarve  e de mim próprio, como presidente da AIP-IAP  ̶, houve um concerto musical com o pianista Bruno Belthoise que em estreia mundial musicou 15 provérbios”, referiu-nos Rui Soares, notando ainda que “na sessão de encerramento, o município de Tavira disponibilizou para todos os participantes um concerto de Cuca Roseta em Tavira, realizado virtualmente, em março, e alusivo aos 500 anos do foral da cidade de Tavira”.

Fernando Pessoa disse proverbialmente que quando Deus quer e o homem sonha, a obra nasce. Tavira e os provérbios são bem a prova disso, pelo menos enquanto Deus der saúde para que o nosso amigo Rui Soares continue a sonhar e energia para a aplicar em tão esforçada missão.

 

PUB